ThiagoDamasceno: Comentando Letras: “Chão de Giz”, de Zé Ramalho

sexta-feira, 25 de janeiro de 2013

Comentando Letras: “Chão de Giz”, de Zé Ramalho

“Eu Vou Te Jogar Num Pano de Guardar Confetes”
Interpretando “Chão de Giz”

Por Thiago Damasceno

            Zé Ramalho: músico, compositor, poeta, enfim, um dos nossos maiores artistas populares de enorme qualidade e com lugar reservado há tempos na música brasileira. É raro encontrar alguém que não goste ou então que negue a beleza de suas músicas. Com lindos arranjos, letras poéticas e namorando a rebeldia rockeira de Bob Dylan e o repente nordestino, Zé Ramalho pôs sua marca na arte e é até considerado “mago” e “profeta” pelos fãs mais fervorosos. Com este post inicio meus comentários sobre suas letras, um verdadeiro desafio tanto para interpretar e mais ainda para escrever sobre a interpretação.

Influenciado pela música nordestina, poesia, rock, pelo misticismo e esoterismo, literatura de ficção científica e literatura científica (como as obras do astrônomo norteamericano Carl Sagan), Zé Ramalho escreve versos com metáforas e simbologias, tornando algumas letras verdadeiros enigmas carregados de mensagens a serem desvendadas. Mesmo assim, suas músicas estão na boca do povo. Cada um entende de uma maneira e a minha não é a mais correta. Tomo como auxílio a obra Zé Ramalho: Um Visionário do Século XX, publicada pela editora Nova Era e de autoria de Luciane Alves.

            Em suas músicas, geralmente, Ramalho aborda a exploração capitalista, a luta diária do homem pela sua sobrevivência, o mau que a espécie humana faz a si mesmo e ao planeta e o esoterismo. Concordando ou não com suas visões de mundo e da escritora citada (que muito me influenciou, mas claro que não determina minha interpretação), o importante é explorar as mensagens que Zé Ramalho coloca em suas músicas, que nos ajudam a pensar nossa atuação em nossas vidas pessoais e no mundo. Pensamentos profundos estão na conhecida Chão de Giz, gravada originalmente no álbum “Avôhai”, de 1977.


Chão de Giz
(Zé Ramalho)

Eu desço dessa solidão, espalho coisas sobre um chão de giz
Há meros devaneios tolos a me torturar
Fotografias recortadas em jornais de folhas, amiúde
Eu vou te jogar num pano de guardar confetes
Eu vou te jogar num pano de guardar confetes

Disparo balas de canhão, é inútil, pois existe um grão-vizir
Há tantas violetas velhas sem um colibri
Queria usar quem sabe, uma camisa-de-força ou de Vênus
Mas não gozar de nós apenas um cigarro
Nem vou lhe beijar, gastando assim o meu batom

Agora pego o caminhão, na lona vou a nocaute outra vez
Pra sempre fui acorrentado no seu calcanhar
Meus vinte anos de boy, that´s over baby, Freud explica
Não vou me sujar fumando apenas um cigarro
Nem vou lhe beijar, gastando assim o meu batom
Quanto ao pano dos confetes já passou meu carnaval
Isso explica porquê o sexo é assunto popular

No mais, estou indo embora; no mais, estou indo embora
No mais, estou indo embora; no mais, estou indo embora

            Essa é uma canção sobre um relacionamento amoroso entre duas pessoas, logo envolvendo solidão, paixão e sexo. Foi feita em uma tarde de 1974 na Vila do Sossego, uma casa que ficava numa afastada praia de João Pessoa-PB, batizada assim (com direito à placa na porta com o nome) por Zé Ramalho após assistir o documentário sobre o Festival de Woodstock, famoso evento musical realizado em agosto de 1969 que mostrou ao mundo que meio milhão de pessoas podem se reunir pacificamente para ouvir música, uma música que, embora inicialmente fora dos padrões sociais, já estava sendo assimilada pelo mercado. As intenções de Zé Ramalho em fundar a Vila eram conversar com os amigos sobre os ideais hippies, em voga na época, e fazer música. Uma das crias daquele lugar foi outro de seus hits: Vila do Sossego. Segundo Luciane Alves, naquela época Zé Ramalho já estava casado e a inspiração para Chão de Giz veio de um amor proibido que ele viveu no período.

            Em vários pontos deste texto, repito as mesmas ideias, às vezes com expressões sinônimas, em outras vezes, não, mas me pareceu impossível fazer o contrário, pois assim o texto perderia coerência e ficaria mais difícil. Agora, antes de cair na interpretação propriamente dita, vamos viajar em alguns pensamentos...


Muitos de nós não sabemos lidar com a solidão. Seja a solidão do indivíduo literalmente sozinho ou do indivíduo que se sente alheio e deslocado de certo grupo ou situação. Qual seria a “cura” para essa solidão? Muitos pensam que essa cura realmente existe e que ela está em outra pessoa, em um parceiro amoroso e sexual. Desse modo de entender a solidão é que muitos esperam conseguir satisfação e felicidade em outra pessoa, no próximo. Essa é a velha ideia de “encontrar a pessoa certa”, de precisar de alguém para ser feliz.

Mas surge a pergunta antes prosseguirmos: Se não sabemos lidar com nossa solidão, não sabemos lidar conosco. E se não sabemos lidar conosco, como poderemos ficar satisfeitos em uma relação, que claro, envolve mais pessoas?

Tateando os demais com olhos apaixonados, podemos não perceber que o próximo não age conforme nossa vontade, mas conforme a sua vontade. Esperamos muita coisa do próximo, mas esquecemos que o próximo não está preocupado, inicialmente, em satisfazer nossas vontades. Quando isso é percebido a sensação de solidão, mais uma vez, nos invade. Em vez de pensarmos que nós mesmos podemos solucionar esse “problema”, pensamos que acabaremos com nossa solidão nos braços de outra pessoa, então voltemos àquela velha ideia destacada nos parágrafos acima e alimentamos esse ciclo vicioso.

            Para deixar tudo mais claro, esse ciclo consiste em sentir-se solitário, acreditar que outra pessoa pode curar a solidão e assim, começar uma relação com essa pessoa, esperando o melhor dela. Isso não acontece, pois o solitário idealizou, imaginou demais a relação, e o solitário, mais uma vez, sofre, pois a realidade é muito diferente do imaginado ou esperado. E, talvez por esquecimento, o sujeito solitário volta a pensar que outra pessoa deva salvá-lo da solidão. Como seres humanos, não seríamos competentes para sermos responsáveis por nós mesmos, para o bem ou para o mal? Não seríamos, sozinhos, responsáveis pela nossa solidão e pela sua “cura”? Quando o indivíduo se decepciona com a relação, percebe que o amor não é aquilo que ele pensava. Então entende que o amor é algo que pode ser inventado, rabiscado e apagado, como um desenho feito com giz.

Creio que a expressão “chão de giz” se refere a isso, a um chão (algo aparentemente sólido), à uma certeza (o amor e a felicidade em outra pessoa)  que se apaga como o giz. “Eu desço dessa solidão, espalho coisas sobre um chão de giz”. O sujeito lírico da letra busca sair da sua solidão e novamente, procura a felicidade em uma relação amorosa e sexual, colocando assim, expectativas em um relacionamento que não depende apenas de uma pessoa e logo, está sujeito a decepções e sofrimento. As expectativas amorosas sãos as coisas espalhadas pelo chão de giz. Esse relacionamento, esse amor, por ser frágil e passageiro, pode ser apagado tal qual um desenho de giz, como lemos anteriormente. Os “meros devaneios tolos a me torturar”, assim como as coisas espalhadas pelo chão, seriam ainda as esperanças que o sujeito tem em um relacionamento, esperanças nem sempre sólidas, e “fotografias recortadas em jornais de folhas, amiúde” seriam a busca por um modelo de relacionamento, como se o sujeito recortasse de jornais fotos de casais famosos que, aparentemente, segundo seus sorrisos para a mídia e suas belezas, vivem bem e são felizes e assim servem de modelo para a sociedade. “Amiúde” é o mesmo que frequentemente, muitas vezes, ou seja, essa busca de modelos amorosos, recortando jornais, é feita constantemente.

            Convém agora destacar mais ideias sobre relacionamentos para continuarmos na interpretação.


Vivendo em sociedade e procurando obedecer as suas leis e normas, tanto oficiais quanto morais, para não sofrer punições e preconceitos, limitamos nossos comportamentos e relações pessoais conforme as leis estabelecidas. Essas leis (religiosas e morais) de certa forma nos oprimem e nos tiram o prazer, nos influenciando para que não façamos coisas consideradas como “pecado” ou “erradas”. Isso se vê muito no comportamento íntimo e sexual. Alguns, no fundo, desejam realizar certas fantasias sexuais, mas a religião e os costumes proíbem ou então a própria pessoa se proíbe. Desse conflito entre desejo e opressão cultural vêm as neuroses e demais angústias mentais. Não é à toa que Zé Ramalho cita o carnaval e o famoso psicanalista Sigmund Freud (1856-1939).

            Precisamos compreender que o carnaval é o evento e a época em que a realização das nossas fantasias são permitidas, e permitidas em público. Um homem pode ser um travesti, uma mulher pode ser um homem, qualquer um pode ser um super-herói, etc. Mas veja que isso é permitido, ou seja, nossos costumes, “encarnados” nas nossas autoridades, permitem que o evento aconteça. Perceba que até nossa “liberdade” é polida, limitada e planejada, pois a algazarra carnavalesca só é permitida em alguns dias do ano. “Eu vou te jogar num pano de confetes” parece fazer referência à essa limitação da relação, pois o parceiro joga sua parceira onde se guarda os confetes, ou seja, a joga em um lugar onde será usada no carnaval. Isso seria uma metáfora de viver com sua parceira conforme as normas sociais, normas que estão presentes na festividade carnavalesca. Muito se permite, óbvio, mas há limites ditados pelas autoridades.

            As autoridades, consideradas “pessoas de bem” e respeitáveis, como juízes e políticos ou simplesmente a autoridade como a moral social vinda da tradição, têm influência decisiva nas nossas vidas. A autoridade é citada na canção como “grão-vizir”, antigo cargo dos impérios islâmicos, que era semelhante ao nosso cargo de primeiro-ministro. “Disparo balas de canhão, é inútil, pois existe um grão-vizir” diz que podemos ir contra os costumes e as autoridades, mas eles têm o poder, poder ao qual nos submetemos. E com essa limitação imposta pelos outros ou por nós mesmos, deixamos de viver momentos de prazer ou momentos que nos deixariam mais satisfeitos. Envelhecemos sem ter vivido tudo que queríamos: “Há tantas violetas velhas, sem um colibri. (Eu) Queria usar, quem sabe, uma camisa-de-força ou de Vênus”. Assim como muitas violetas velhas ficam sem um beija-flor (colibri), ficamos sem nossos prazeres satisfeitos, pois nos limitamos, vestimos camisas-de-força ou de Vênus (preservativo). A mensagem não sugere que se faça sexo sem preservativo (risos), interpreto esse trecho como uma metáfora sobre a limitação dos prazeres.

            Se o sujeito não perceber que a moral e que ele mesmo, até certo ponto, são os culpados por sua infelicidade ou insatisfação, irá de novo procurar a felicidade em outro alguém, logo, se decepcionando, como já mencionado anteriormente, pegando “carona” em alguém (em um caminhão) e sendo derrotado, indo a nocaute, de novo: “Agora pego o caminhão, na lona vou a nocaute outra vez”. Esse modo de pensar o amor deixa as relações com um forte caráter de dominação, pois um parceiro quer que o outro o satisfaça, e pensar como ambos podem colaborar para uma boa relação é outra história. Zé Ramalho pensa a relação amorosa como divisão e suplemento, não como dominação e complemento. A dominação é ficar preso ao outro: “pra sempre fui acorrentado no seu calcanhar” e esse calcanhar pode estar relacionado ao mito e provérbio grego “Calcanhar de Aquiles”, que informa que o ponto fraco do conhecido herói Aquiles é o calcanhar. O parceiro dominante comanda, mas também sofre ao carregar um peso, que é o companheiro (a) preso (a) ao seu calcanhar. O calcanhar pode ser entendido como seu ponto fraco, a solidão. A metáfora seria que numa relação de dominação, onde não há parceria, os dois parceiros se sentem solitários, mesmo estando juntos, e desse modo permanecem presos (acorrentados) um ao outro.
           
Como já dito, muitos envelhecem e não vivem o que queriam: “Meus vinte anos de boy, that´s over, baby! Freud explica”. That´s over pode ser traduzido como “acabaram”, “isso acabou”. Toda aquela juventude, aqueles sonhos, aqueles desejos, acabaram tanto pela passagem do tempo quanto pela limitação sofrida pelo sujeito que, seguindo as normas sociais e se proibindo, não aproveitou muitas coisas: “Mas não vou gozar de nós, apenas um cigarro. Nem vou lhe beijar, gastando assim o meu batom. Quanto ao pano dos confetes, já passou meu carnaval. Isso explica porque o sexo é assunto popular”. Aceitando as limitações impostas pelas normas, o sujeito nem se atreve a tragar um cigarro ou beijar na boca. Não se arrisca para não sair das normas, para não perder seu cigarro e seu batom. O carnaval já acabou, então não há mais espaço para as fantasias e por isso o sexo seria popular, por ser proibido, limitado, causando curiosidade a todos. Temos interesse e curiosidade pelo que está guardado e escondido.

            Concluo aqui meu texto interpretativo sobre Chão de Giz. Posteriormente, comentarei outras letras do “Anjo do impossível”, como disse o artista Jorge Mautner sobre Zé Ramalho. No mais, estou indo embora...           

Um comentário:

  1. Zé Ramalho é complexo, e muito. São letras (poesias) e músicas lindas; algumas flertando com o lirismo. Umas das músicas dele que chegam a causar uma sensação de medo e angústia é Dança das Borboletas. E por falar desta canção, o que dizer do instrumental dela?

    O triste é ter que ouvir o lixo de hoje em dia. O próprio Zé Ramalho não é mais o mesmo. Parece-me que os anos 70/80 foram abençoados por alguma magia de outra dimensão, que nem mesmo os gênios daquela época conseguiram manter o mesmo rumo.

    Parabéns pelo texto.

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