ThiagoDamasceno: janeiro 2022

terça-feira, 18 de janeiro de 2022

Crônica: Boldo para a Digestão, Camomila para os Nervos: cultura medicinal popular

Quem nunca sentiu uma melhora na saúde após tomar um chazinho da vovó que atire a primeira pedra... Dia desses, andando pelo centro de Goiânia, deparei-me com uma banca de remédios naturais que existe desde o Neolítico. Sempre passei por lá, mas naquele dia em específico a pequena loja brotou do Cosmos como uma epifania, como se os céus tivessem lançado um grande feixe luminoso revelando aquela banca e uma verdade profunda de essência histórica e mundial: a cultura medicinal popular é um sinal de civilização!




Não preciso falar sobre a validade do poder curativo das plantas. Há muitas pesquisas científicas que comprovam isso e nós sabemos disso pela experiência. Refletirei aqui sobre o quanto esse saber popular é sofisticado e um indício de inteligência humana vivendo em sociedade.

As descobertas das forças curativas de plantas, raízes e troncos são resultados de anos e anos de observações, testagens (com acertos e erros), ajustes e transmissões desses conhecimentos de geração em geração. Isso só é possível em contextos em que humanos possuem linguagem e organização social sedentária que possibilita a agricultura. Esses feitos foram características do período Neolítico, ocorrido entre 7 mil e 2.500 a.C. Com a sedentarização dos grupos humanos e o desenvolvimento da agricultura, crescemos em número, construímos as primeiras cidades e realizamos feitos notáveis que nos destacaram perante os outros animais.

Usei os verbos na primeira pessoa do plural porque essas experiências fizeram e fazem parte da humanidade como civilização. É uma história que nos pertence. Graças a essas descobertas chegamos até aqui e estamos indo além (para o bem e para o mal).

Essas percepções de  “conhecimento civilizatório” e “legados históricos globais” são ainda mais observáveis nestes tempos de globalização, onde há um grande fluxo diário de compartilhamento de saberes por meio da Internet. Outro dia desses, por exemplo, aprendi a fazer coalhada seca à moda libanesa com os vídeos de dois descendentes de árabes. Esse fio global de inteligência que nos une vem desde as épocas em que nossos antepassados desenhavam seus cotidianos nas cavernas e continuou à medida que mais avanços civilizacionais foram sendo inventados, como as escritas e o comércio. A globalização é recente, mas os contatos entre diversas regiões do mundo vêm desde a Antiguidade por meio, principalmente, das rotas comerciais.

E dentre esses saberes históricos está a medicina popular das plantas, nascida de muito tempo de investigação e de prática, com “metodologia” própria inspirada, dentre outros aspectos, na observação e na manipulação dos elementos da Natureza. Muitos riscos foram experenciados para se descobrir o poder curativo e também alimentício das plantas. Imagine o trabalho que foi descobrir que, para se preparar a maniçoba, era preciso cozinhar a folha da mandioca moída (maniva) por pelo menos sete dias para que fosse retirado o veneno da folha! No caso, o ácido cianídrico. Por processos semelhantes, mas creio que menos letais, devem ter passado os experimentos populares com boldo, camomila, sálvia, dentre outras plantas, hoje conhecidas por suas vantagens medicinais.

Esse conhecimento dos benefícios dos elementos naturais é mais associado às nossas avós e avôs ou a comunidade mais tradicionais dos interiores ou a comunidades indígenas. Isso tudo é folclore, ou seja, é sabedoria popular. O conhecimento folclórico é parte da identidade de um povo. É algo que vem da vida e gera vida, sempre em constante movimento. E não só o conhecimento medicinal das plantas, mas também nossos mitos e lendas, provérbios, culinárias, músicas, causos, contos e poesias populares fazem parte dos nossos folclores, que variam por região. Cada país tem os seus folclores, alguns com certos aspectos semelhantes a outros folclores ou não. Também há folclores que influenciam uns aos outros, retomando àquela ideia de transmissão de saberes no decorrer história. O conhecimento folclórico, sendo expressão cultural, é tão importante quanto o conhecimento científico. Apesar de nascerem de processos diferentes, esses saberes não são, necessariamente, rivais entre si. Em muitos contextos até se complementam.

Como seres pensantes e dependentes da Natureza, devemos respeitá-la e cuidá-la como nossa Grande Mãe, figura presente em muitos mitos. Afinal de contas, se nossos passado e presente vieram e vêm, em parte, dela, o futuro também virá.

Thiago Damasceno, 18 de janeiro de 2022 

Contato: thiagodamascenoliteratura@gmail.com 

terça-feira, 11 de janeiro de 2022

Crônica: Papinho de Coach

 6 de janeiro de 2022 d.C. O Corpo de Bombeiros de São Paulo resgatou 32 pessoas e 1 coach do Pico do Marins, na Serra da Mantiqueira, formação a mais de 2 mil metros acima do nível do mar. O intrépido grupo de aventureiros vencedores na vida foi obrigado a paralisar sua heroica jornada por conta da chuva com fortes ventos. Ninguém se feriu, mas se os bombeiros não tivessem interferido, os guerreiros do amanhã morreriam de hipotermia.

            Por que raios essas pessoas se arriscaram assim? Triste resposta simples: Porque caíram em papinho de coach que comparou uma escalada irresponsável (sem treinamento e equipamentos) ao tal “subir na vida”.

            É sobre os papinhos de coach que falaremos hoje.

            Há bons e maus profissionais em qualquer área e no ramo coach não é diferente. Infelizmente há os que se aproveitam do aparato mercadológico capitalista e do emocional debilitado das pessoas para ganhar grana e fama. Dentre os aparatos mercadológicos capitalistas estão as ideias de que “Todos podem conquistar o seu lugar ao Sol!” e de que “Conquistas são méritos, você colhe o que você planta!”.  

Pois bem, venho das zonas sombrias das Verdades Desagradáveis da Vida para dizer que: não, infelizmente nem todos podem conquistar tudo. No modo de produção capitalista o Sol não é para todos. E nem tudo é uma questão de meritocracia. Os contextos sociais e culturais fazem parte da vida de todos. Há mil e uma forças e contra forças influenciando nos rumos que seguimos. Não podemos afirmar, com o orgulho cafajeste de alguns coachs, que um negro que mora periferia tem as mesmas chances e oportunidades que um branco de classe média ou alta. E mais uma coisa importante: não, nem sempre colhemos o que plantamos. A existência humana não é regida pela lei da ação e reação devidamente proporcionais. Muitas vezes o caos e o imprevistos tomam de conta.  

            Munidos dos aparatos que falei, há coachs irresponsáveis que trabalham em cima dos emocionais abalados de pessoas, fazendo com que elas acreditem piamente em meias verdades ou até mesmo em mentiras floreadas com frases curtas, objetivas e de efeito. Atualmente, nas redes sociais, é comum (e brega) que essas frases tenham como fundo fotos de atores sisudos e viris, esbanjando uma aparente seriedade, competência e sucesso. Nesse processo, esses coachs sintetizam toda a complexidade da vida em algumas palavras. Venho novamente das zonas sombrias das Verdades Desagradáveis da Vida dizer que não há livro, religião, filosofia ou ciência que dê conta da vida inteira de todo mundo em qualquer lugar e tempo com suas inumeráveis influências, caminhos, desvios, acertos e desacertos. Nossas civilizações serão extintas sem dar conta disso. A vida é bem maior do que pensamos e vivemos.  

E tudo bem. Nem tudo se resume a conquistar sentidos e tudo que quisermos. Até mesmo porque nossos desejos nunca terminam. E se terminassem, o que seriam das nossas vidas?

Como humanos, temos uma inteligência única que nos permite perceber a nós mesmos como seres dotados da capacidade de dar sentido a nós e ao que fazemos. E esse existir humano não se satisfaz plenamente com qualquer coisa ou mesmo com tudo. É como se fôssemos maiores que nós mesmos e que nossos desejos. É um paradoxo angustiante. A fonte do querer nunca cessa e por isso mesmo que fomos, somos e seremos eternos insatisfeitos. Como cantava o sábio Belchior na música “Dandy”: “Nenhum supermercado satisfaz meu coração”.

Se nenhum supermercado nos satisfaz, imagine um papinho de coach. Isso é uma verdade dura e desagradável, mas quanto antes for aceita, melhor. A incompletude, as derrotas, as angústias e as tristezas também fazem parte da vida. Por isso, minhas caras e meus caros leitores, cuidado com os coachs irresponsáveis. Não caiam em ideias de projetos megalomaníacos que prometem o mundo inteiro em X meses ou X dias. Não se deixem levar por frases de efeito ou mesmo por trechos da Bíblia tomados de forma isolada e usados de modo canalha. Isso é pobre e brega é um insulto às riquezas históricas e culturais da Bíblia ou de qualquer sabedoria genuinamente religiosa e filosófica. Não caiam em conversas fiadas que dizem que correr riscos hoje é sinônimo de colher sucessos no futuro. Nem tudo se alcança e nem tudo nos basta. E de novo: tudo bem. Coisas da vida.

Cuidem bem dos seus dinheiros e saúdes físicas e mentais. Procurem ajuda competente e com formação. Psicólogos e/ou psiquiatras para os casos mentais e emocionais, empresas e consultores financeiros para assuntos de dinheiro. Se for enveredar pela religião, cuidado com os charlatões golpistas. No mais, desconfie das frases de efeito, das grandes promessas em curto tempo e da breguice. Vale aqui a velha sabedoria popular: “O seguro morreu de velho”.

E cuidado também com motivações extravagantes. Segure a sua onda para não fazer besteira como escalar um pico perigosíssimo sem os devidos cuidados. Como diz um meme: “Todo cadáver encontrado no Everest já foi alguém motivado, proativo e fora da sua zona de conforto”.

 

Thiago Damasceno, 11 de janeiro de 2022

 

Notícia do resgate conferida no portal O Povo: https://tinyurl.com/5b8j4zef