ThiagoDamasceno: 2015

terça-feira, 8 de dezembro de 2015

Os Mutantes: Quando a Brincadeira Ficou Séria

Os Mutantes: Quando a Brincadeira Ficou Séria

   Por Isabela Crispim 
Graduanda em História,
produtora de eventos
e professora na rede privada de ensino

    Uma junção de três universos distintos, que sensação poderia isso nos proporcionar? A banda Os Mutantes pode muito bem nos dar essa resposta e espero que vocês, caros leitores, conseguiam ter um gostinho deste universo encantado. Desejo também que após a leitura desta matéria vocês corram para aquilo que o século atual nos proporciona e baixem algum dos maravilhosos álbuns dessa viagem que chamamos de Os Mutantes. 


     No ano de 1966 uma rara história de amor e música se inicia com Rita Lee (aquela belezura do cabelo cor de cenoura), Gênio Batista, opa, quero dizer, Arnaldo Batista e um dos melhores guitarristas do Brasil, Sergio Dias, assim nascendo Os Mutantes, nome estipulado um pouco antes de apareceram no III Festival de Música Popular Brasileira.

      Muitos afirmam que essa banda vem na onda da Tropicália, mas eu não concordo com isso. Prefiro dizer que Os Mutantes nada mais é do que um som extremamente humorístico e um verdadeiro gozo, uma alegria. Não existem limites: falam de amor, loucura, amizade e provavelmente tudo que você já pensou essa banda cantou a respeito. Apesar de parecer tudo uma brincadeira, fazer um som igual ao deles é deveras difícil. 

     Quando escutamos Os Mutantes percebemos ondas psicodélicas e experimentalistas. Eles realmente sabiam como lidar com os instrumentos que tocavam, afinal era um dos irmãos de Arnaldo e Sérgio que criava os instrumentos da banda (Cláudio César Batista, considerado como integrante da banda), pois naquela época não existia pedais de guitarra no Brasil e tiveram que criar os seus próprios. Sabiam harmonizar, desde a voz até o próprio figurino e por fim “A brincadeira ficou séria”, ou seja, ao mesmo tempo em que a palhaçada (no sentido de gozação) estava envolvida na identidade da banda havia toda uma técnica por trás de suas notas.

       Uma das provas é o fato de estarem entre os discos mais experimentais de todos os tempos. Segundo a revista britânica Mojo eles se encontram na frente de bandas como Beatles e Pink Floyd. O disco Tecnicolor seria um dos LPs mais marcantes dos anos 70 no Brasil sendo totalmente impecável. Meus caros, eu afirmo que não existe no Brasil um som tão criativo quanto Os Mutantes. Não percam mais um segundo sem embarcar nesta nave espacial, pois afinal “Estamos todos aqui reunidos para esta maravilhosa festa” (BATISTA, A).



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terça-feira, 3 de novembro de 2015

Crônica: A Graça de Um Lugar Só Seu

A Graça de Um Lugar Só Seu

Por Thiago Damasceno


O protagonista Ethan Hawley – do romance O Inverno da Nossa Desesperança, de John Steinbeck – tem um Lugar, um local especial no antigo cais de sua cidade. Pra esse Lugar ele vai sempre que precisa refletir sobre as mudanças na sua vida. E lá, sozinho e em silêncio, ele alça altos voos nos seus pensamentos existenciais.

            Creio que todos nós precisamos de algo do tipo. É fundamental pra relaxarmos e chegarmos a uma espécie de centro a partir do qual iremos agir. O meu Lugar não é tanto um local, pois não envolve um local e um momento definidos, mas algo criado por mim, algo circunstancial, envolvendo mais do que local, tempo e pensamentos. Descobri-o há pouco. Criei-o com a ajuda do livro de crônicas A Graça da Coisa, de Martha Medeiros, e o álbum Velha Gravura (1990) do grupo Quaterna Réquiem.

            Conheci a escritora gaúcha em um programa de entrevistas, no Conexão Roberto D´Ávila, se não me engano. Gostei da sua forma de ver as coisas. Quando encontrei seu livro de crônicas não pensei duas vezes antes de comprá-lo. Em A Graça da Coisa, Martha escreve com fluidez e naturalidade sobre diversos temas da vida privada e da vida social, sempre instigando a reflexão. É uma escritora de mão cheia no gênero textual crônica, híbrido de jornalismo e literatura.


            Por mãos cheias também é composto o grupo de música instrumental Quaterna Réquiem. Criado no final dos anos 1980 no Rio de Janeiro pela tecladista Elisa Wiermann e pelo baterista Cláudio Dantas, a banda mistura música de câmara com progressivo sinfônico. É uma beleza só. Músicas instrumentais ao embalo de diversas atmosferas sensoriais. Coisa linda de se ouvir. Destaque para as canções “Aquartha”, “Velha Gravura” e “Madrugada”.


            E pra quê lugar melhor do que ler Martha Medeiros e ouvir Quaterna Réquiem? Tento começar todos os meus dias assim, nessa vibe bem “de boas”.

A graça da vida está nesses pequenos prazeres.



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quarta-feira, 21 de outubro de 2015

Crônica: “Nos Deixem Viver, Pelo Amor de Deus!”.

“Nos Deixem Viver, Pelo Amor de Deus!”

Por Thiago Damasceno


A desgraceira no transporte coletivo é realidade em todas – senão em quase todas – as capitais. Nem adianta listar os problemas aqui porque eles são velhos conhecidos por todos.

E em Goiânia a coisa toda assume tons absurdos e surreais.


            Agora os bilhetes SitPass foram extintos. A primeira raça dizimada, após os cobradores. Sendo assim, temos que usar o Cartão Fácil recarregável, algo considerado mais moderno, chic, Primeiro Mundo, essa merda toda bastante alheia ao cotidiano brasileiro. Acontece que a direção da CMTC (Companhia Metropolitana de Transporte Coletivo) limitou o uso do cartão. Você só pode usar uma vez por terminal ou ônibus e no máximo quatro vezes ao dia. A justificativa é garantir a segurança dos usuários.
           
            Tá certo... Senta lá, Cláudia.

            Atitudes como essas, que visam apenas aos lucros de poucos por meio da exploração e da criação de mais sofrimento à população confirmam uma ideia livre – e deveras clichê - que tive acerca do nosso sistema políticoeconômico.
           
            Estava eu andando de ônibus quando me veio um pensamento hippie. A parte de mim que ainda está voltando de Woodstock pensou: o mundo está a desgraceira que está, devido, em grande parte, aos obstáculos que põem contra a vida popular.  

            Em outras palavras, como canta Sílvio Brito: “Tem que pagar pra nascer, tem que pagar pra viver, tem que pagar pra morrer”.

            Não, não estou exagerando no drama e não sou a favor de ser caloteiro, mas é que pras camadas menos favorecidas há toda uma política de impedimento à vida. Tudo é muito difícil, desde transporte à manutenção da saúde. O brasileiro pobre e de classe média vive cercado por um dinheirisimo selvagem, uma burocracia avassaladora e demais bloqueios aos atos vitais. Parece que apenas a morte lenta por inação é autorizada. A elite brasileira é sádica. Sua filosofia é de que o outro precisa estar prostrado no chão para que o elitismo possa desfilar.  

            O trabalhador que ganha salário mínimo, o filho desse trabalhador, que estuda em escola pública ruim os e demais cidadãos com estilo de vida semelhante nem sempre têm uma consciência que permitam a eles criticar seus meios sociais e discutir com coerência política e economia, mas sofrem sentem diariamente na pele a exploração dos donos de poder a ponto de erguerem as mãos pros Céus e clamar: “Nos deixem viver, Pelo Amor de Deus!”.


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segunda-feira, 5 de outubro de 2015

Resenha Literária: Os Sete, de André Vianco



Os Sete
Tem Gente Que Não Acredita em Vampiros...

Por Thiago Damasceno


Reúnam todo alho e estacas possíveis porque os vampiros chegaram ao país!  Em Os Sete, o paulista André Vianco apresenta uma trama sombria, ágil e divertida em que vampiros portugueses da Idade Média despertam em solo brasileiro infernizando a vida de muitos em Amarração, Porto Alegre e Osasco.

            Com criatividade, Vianco estabelece seu nome na fase promissora da atual literatura fantástica brasileira, a qual ele foi um dos pioneiros, senão o primeiro, na abertura do mercado para essa vertente.   O autor adapta com maestria o mito do vampiro à história luso-brasileira e ao contexto nacional. 


Trama de Sombras e Sangue

Nobres homens de bem, jamais ouseis profanar este túmulo maldito. Aqui estão sepultados demônios viciados no mal e aqui devem permanecer eternamente. Que o Santo Deus e o Santo Papa vos protejam”.

            Esses são os dizeres encontrados numa das faces de uma enorme caixa de prata. O insólito objeto foi encontrado em uma caravela portuguesa do século XV adormecida no fundo do mar há dois quilômetros da costa de Amarração, pequena cidade do litoral gaúcho.
            
        Os amigos mergulhadores Tiago e César encontraram a velha embarcação naufragada e venderam alguns objetos perdidos que encontraram lá, como moedas de ouro e prata e ídolos, conseguindo um bom dinheiro. Intrigados com a caixa de prata e dispostos em receber mais verba por ela, contataram a velha amiga Eliana, estudante de História da Universidade Soares de Porto Alegre (USPA).

            A equipe da USPA, chefiada pelo professor e historiador Delvecchio, retirou a caravela do fundo do mar e levou a sinistra caixa de prata para análise em um laboratório improvisado num galpão na praia de Amarração. Na superfície da caixa, além da advertência, encontraram sete nomes: Lobo, Tempestade, Acordador, Gentil, Espelho, Inverno e Sétimo. Ao abrirem o objeto, descobrem sete múmias. Seriam os sete demônios da inscrição? Segundo o professor Delvecchio, obviamente que não. Deveriam se tratar de judeus caçados pela Inquisição, instituição instaurada no Reino de Portugal entre 1521 e 1530 durante o mandato de Dom João III, o Piedoso. Para Delvecchio, aquelas múmias se tratavam de judeus acusados de bruxaria.

            Tudo seguia com bastante empolgação científica até que Eliana se feriu nas bordas da caixa e deixou sangue escorrer para um dos corpos. Horas depois os pesquisadores perceberam que o corpo estava se regenerando. Junto a isso, somou-se o estranho frio repentino que se abateu sobre a cidadezinha, e em pleno verão.  

            Com o correr das horas, o corpo foi se regenerando mais e o “frio do cão”, como diziam alguns moradores, aumentou tanto a ponto de se tornar mortal. Tiago, de mente mais aberta ao sobrenatural, considerou que aquele corpo era um bruxo e se trata de Inverno, conforme estava escrito na caixa. Dito e feito.

            Inverno recuperou a plena forma física e despertou. Carregou consigo um dos corpos, chamando-o de “maldito” e disse que vai voltaria para buscar seus outros irmãos e a doce menina que o despertou, Eliana. Nessa altura do campeonato, o Exército já tinha destacado alguns soldados para a localidade, mas eles não foram suficientes para vencer Inverno. Mortes, terror e um frio mortal começaram a aterrorizar a pequena cidade.

            E isso é apenas o começo do rastro de sangue.

Vampirismo Português em Terras Brasileiras

            Os sete vampiros são portugueses. Em todo o livro são deixadas pistas da origem deles, até que um pouco depois da metade do enredo Miguel (Gentil) revela toda a história dos sete malditos para Tiago. Gentil é um vampiro mais afeiçoado aos humanos, embora também tome sangue e não lute contra seus outros irmãos. Eles se denominam irmão por terem vivido muito tempo juntos, mas apenas Miguel e Sétimo são irmãos de sangue.

A história que Miguel revela para Tiago aborda um reino Portugal medieval com um povo temeroso às criaturas das trevas, com castelos e caçadores de vampiros. Os sete vampiros viveram toda uma intriga com muitas mortes e traições e desejam, com exceção de Miguel, recuperar sua mãe de sangue (Eliana, que despertou o primeiro dos sete) e voltar para Portugal. Miguel, por sua vez, resolve acordar o temido Sétimo por meio de Tiago, mas antes, revela ao humano a história dos sete.         

Resumi essa história ao final do texto. Não creio que contá-la seja tanto um spoiler, pois não revela algo no presente ou no futuro da trama, apenas põe luz em mistérios do passado. Logo, para quem ainda não leu o livro, basta ignorar o último tópico deste texto. O resumo também é útil para quem leu Os Sete caso queira relembrar alguns pontos da trama antes de dar prosseguimento à leitura da saga, que continua em mais 5 livros: Sétimo, O Senhor da Chuva e a trilogia O Turno da Noite.


 Os Vampiros de Os Sete

Para alegria dos inconformados com os vampiros da Saga Crepúsculo, Vianco nos apresenta vampiros diferentes. Segundo o próprio autor, no Nerdcast 379 – Literatura Fantástica Brasileira, os vampiros de Os Sete são vampiros clássicos, até estereotipados. Eles temem a luz do Sol, alho, estaca, têm mais força, velocidade, inteligência e resistência que os humanos. Só não têm medo de crucifixos.

Justamente pelo passado, personalidades e modos de falar, os vampiros são os personagens mais carismáticos da trama, por mais violentos que sejam. Em alguns momentos não matam, em outros matam devido à sede por sangue e em outros momentos por pura maldade, mas de fato, são os personagens que mais chamam atenção na leitura. Os personagens humanos são coadjuvantes em boa parte da trama.  

Muitos capítulos narram a busca de Guilherme (Inverno) e Manuel (Acordador) aos seus irmãos, e essa parte é muito, mas muito divertida porque os vampiros vão conhecendo por si mesmos o mundo moderno no Brasil. Deparam-se com um helicóptero e o chamam de “inseto de ferro voador que cospe luz”. Chamam um trem de “serpente de ferro” e por aí vai. Assustam-se bastante com inventos da modernidade como carro, luz elétrica, geladeira, edifícios, rádio, dentre outros. Isso, mais o sotaque lusitano com expressões como “pitéu, ó gajo, ô brasileiro, ó pá e cara de bacalhau” dão um ar hilário para as criaturas sem alma. O tom que se tem é que estamos assistindo a um daqueles bons e velhos filmes de aventura da Sessão da Tarde em que monstros saem andando por aí. Os ingredientes ação, comédia, terror e horror estão na medida certa em Os Sete.

Aspectos Literários e Ficcionais

O narrador de Os Sete é onisciente e seu foco ou pessoa narrativa é a terceira pessoa do singular, com traços de impessoalidade e pessoalidade, às vezes esbarrando no discurso indireto livre, quando a fala do narrador se mistura às falas dos personagens ou quando o narrador relata usando os pensamentos e vocabulários próprios dos personagens.

O tom da narrativa é rápido e direto, mas com pitadas de poesia macabra, assim digamos. A trama de Vianco é bastante visual e com muita ação. É um thriller. Os personagens humanos precisam descobrir a verdade por trás de mistérios e fatos enquanto tentam sobreviver a ataques fatais contra suas vidas. Quem curte um bom suspense tem um prato cheio disso em Os Sete.

Como já mencionado, a narrativa tem momentos violentos, sombrios e engraçados, mas sempre com naturalidade e com equilíbrio. Porém, faço “vista grossa” à questão do ponto de vista, a perspectiva na qual a estória é contada. O tratamento dado ao ponto de vista é inconsistente, pois esse salta de um personagem para outro muito rápido e sem uma organização muito bem definida. Mas em termos literários, um ponto alto de Os Sete são os diálogos.

Os diálogos do romance Vianco reproduzem na medida do possível a linguagem cotidiana brasileira. Além de retratar bem a fala portuguesa por meio de seus vampiros. Tal aspecto contribui para a verossimilhança da obra e caracterização dos personagens.

            Elogio a trama em sua forma geral, mas ao meu ver ela possui algumas “pontas soltas”.  

            A primeira é sobre a história dos mortos vivos. Ainda no começo da narrativa, Manuel (Acordador) ressuscita cinco defuntos e um capítulo é dedicado à história de três deles. Porém, são histórias cujas conclusões não mostradas posteriormente e que pouco contribuem para o andamento do enredo. Esses zumbis deveriam ser mais aproveitados ou menos aproveitados, não o tratamento de meio-termo dado a eles. Dois aparecem no final, sendo bastante úteis à trama, mas apenas dois dos cinco.

            E por falar em aproveitamento de personagens, em certo momento o Exército é auxiliado pelo Padre Alberto Cantor, especialista em assuntos paranormais e que até trabalhou em um caso envolvendo anjos, conforme comenta um dos personagens. Todavia, Padre Alberto apenas comenta um pouco, olha os raios-X das múmias, diz que são vampiros por causa de suas arcadas dentárias e depois desaparece. Apesar de esbarrar no clichê – um padre especialista no sobrenatural – Padre Alberto Cantor deveria ter aparecido mais no enredo. Outro que foi esquecido, da metade para o final do romance, foi o professor Delvecchio, que apesar das provas em contrário, passa o romance todo acreditando que os seres sanguinários se tratam de extraterrestres que foram a Portugal na Idade Média. 

            Outro furo foi a desimportância que os vampiros deram à história humana e a Sétimo. Logo após despertar, Guilherme (Inverno) escondeu o cadáver do maldito em um hotel abandonado de Amarração. Durante a estória, os cinco vampiros (Guilherme, Manuel, Fernando, Affonso e Baptista) querem apenas pegar a caravela de volta para Portugal para voltarem ao castelo no Rio D´Ouro e se vingarem dos descendentes de Tobia, o caçador que os prendeu na caixa de prata. Miguel é um estudioso do mundo humano e menciona que os seus irmãos têm o mesmo interesse que ele, mas será que esses cinco vampiros não conseguem raciocinar que, se a antiga colônia portuguesa, o Brasil, está em outro nível cultural, Portugal também não estaria? Logo, é bem possível que o antigo castelo do D´Ouro nem exista mais!

            Além disso, os vampiros passam toda a trama temendo Sétimo, dizendo que ele é mais forte, que irá encontrá-los em qualquer lugar, etc. Se Sétimo é visto como mais forte, porque no passado, ao voltar do Inferno, procurou a aliança de Tobia para se vingar dos irmãos? Creio que essa questão se responda nas demais obras da saga. Outra questão: se Sétimo pode encontrar todos, porque Guilherme deixou sua múmia no hotel e embarcou na caravela de volta para Portugal? Um dia alguém poderia encontrar Sétimo. E realmente encontra...

            E o despertar do monstruoso Sétimo é o gancho para o próximo livro da saga, que leva seu nome, Sétimo. A trama de Os Sete termina de forma aberta, indicando todo um universo vianquiano por vir.

Um Pouco de História


André Vianco nasceu em 1976 na Grande São Paulo e foi criado em Osasco. Após perder o emprego, dedicou-se a terminar Os Sete e depois de muito esforço e dedicação conseguiu ser publicado no final dos anos 1990 e início dos 2000, época de estouro da saga Crepúsculo.

Como mencionam outros autores como Eduardo Spohr, Raphael Draccon, Leonel Caldela e Affonso Solano no Nerdcast 370 – Literatura Fantástica Brasileira – Vianco é uma referência no ramo por ter conseguido ser publicado em um momento anterior ao boom da Internet e nas redes sociais no país, elementos que ajudaram outros autores como Eduardo Spohr.

            Vianco conseguiu começar a construir seu nome como autor numa época em que não era comum no mercado literário a presença de autores nacionais escrevendo no gênero fantástico, ainda mais sobre vampiros, tema bastante abordado na literatura. Mas com criatividade e perseverança ele adaptou de forma empolgante o mito dos sanguessugas e pôs seu nome na galeria da bem sucedida fase comercial da literatura fantástica nacional.


Referências

Jovem Nerd (Site Oficial). Nerdcast n° 379: Literatura Fantástica Brasileira. Disponível em http://jovemnerd.com.br/nerdcast/nerdcast-379-literatura-fantastica-brasileira.  Acesso em 08/09/15.

JUNIOR, Benjamin Abdala. Introdução à Análise da Narrativa. São Paulo: Scipione, 1995.

LODGE, David. A Arte da Ficção. Porto Alegre, RS: L&PM, 2011.

VIANCO, André. Os Sete. São Paulo: Novo Século, 2001.

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Tópico Extra: A História dos “Vampiros do D´Ouro”

Miguel diz para Tiago que, há muitos e muitos anos, “muito antes de Portugal ser chamado Portugal, quando o Céu e o Inferno entraram em conflito, nós fomos criados”. (VIANCO, 2003, p. 274). “Eles vieram” numa noite escura e transformaram muitas pessoas em seres sem alma, em vampiros. As centenas de novos vampiros, confusos com sua natureza e sentindo-se excluídos dos homens, criaram uma vila própria, mas como a sede por sangue humano foi inevitável, atacaram os vilarejos vizinhos. Devido a isso, passaram a ser caçados, e a cada dia os humanos aprendiam mais sobre aqueles seres sem almas, tornando-se mais eficientes em suas caçadas, até que certo dia, atacando junto com a luz do Sol, conseguiram dizimar quase todos os vampiros. 30 dos seres sombrios aproveitaram a chegada do crepúsculo e fugiram do massacre.

            Os 30 passaram a habitar um castelo às margens do Rio D´Ouro, castelo esse amaldiçoado devido ao fato de todos os seus habitantes e vizinhos terem morrido de Peste Negra. Lá, os 30 – 22 homens e 8 mulheres estéreis – viveram da forma mais discreta possível, atacando apenas viajantes para não chamar a atenção dos humanos que moravam na região, e acolhendo no seu feudo criminosos e demais excluídos da sociedade que garantiam a segurança do castelo durante o dia. Em troca, esses humanos poderiam viver tranquilamente e sem os ataques dos vampiros. Eram os anos de Dom Diniz, rei ocupado com a consolidação do reino português e desatencioso quanto aos boatos dos “vampiros do D´Ouro”. Mas essa paz iria acabar.

            Quatro dos 30 vampiros cansaram-se da vida enclausurada e passaram a atacar por prazer e até retornaram à antiga vila em que moravam em busca de vingança. Eram Guilherme, Sétimo, Rodolfo e Constança. Todos se consideravam irmãos, mas os únicos irmãos de sangue e útero eram Miguel e Sétimo. Este ainda era um menino quando foi transformado em vampiro e se tornou mais poderoso e maléfico que todos os outros. À medida que passavam os anos, os vampiros se tornavam mais fortes, mas com Sétimo foi diferente. Sua evolução foi mais rápida. Conseguiu enxergar no escuro e ter uma velocidade incrível bem mais cedo que os outros. Sua sede por sangue também era incontida. Tornou-se uma espécie de adolescente manipulador, ciente de seu poder e temor que inspirava aos demais. Mas até o “reinado” de Sétimo teria fim.

            Sua hegemonia chegaria ao fim quando Dom Afonso IV, o Bravo, assumiu o trono em 1325. Após vencer conflitos monárquicos internos, o novo rei voltou sua atenção para os vampiros. Enviou cinco cavaleiros para exterminá-los, mas esses foram vencidos. Depois, transformou seu general de confiança Tobia, em um especialista nos Assuntos Negros. Tobia foi um exímio caçador, formou um exército com o apoio real e infernizou a vida dos 30 vampiros, reduzindo-os a sete: Sétimo, Guilherme, Manuel, Fernando, Affonso, Baptista e Miguel.

            A partir de 1325 todos os descendentes do caçador Tobia também foram batizados como Tobia (s) e desde pequeno treinados para caçar vampiros.

            A preocupação dos vampiros com Tobia e as irresponsabilidades sanguinárias de Sétimo eram tamanhas que Guilherme, o mais forte depois de Sétimo, encontrou uma bruxa e com ela invocou Lúcifer. Guilherme propôs que o Príncipe das Trevas lhes desse poder suficiente para vencer o exército de Tobia. O Diabo propôs uma troca: seis incríveis poderes a seis vampiros em troca de um deles como escravo por 150 anos.

            Os vampiros queriam se desfazer de Sétimo. Bastava convencer seu irmão, Miguel, a fazer a troca. Este se opôs, então os outros cinco vampiros conspiraram contra os dois irmãos.

            Os cinco assassinaram Nathália, moça do feudo por quem Miguel era apaixonado, e deixaram em suas mãos o crucifixo de ouro de Sétimo, fazendo Miguel acreditar que o irresponsável irmão matara sua amada. Enlouquecido de ódio, Miguel decidiu entregar Sétimo. De imediato, Lúcifer apareceu perante eles aceitando o acordo. Sétimo também surgiu, mas foi arrastado pelo Diabo paras as profundezas. Os outros seis adquiriram poderosos dons, e também alcunhas dadas por eles mesmos.

Affonso tem o dom de se transformar em um gigantesco lobo. Daí sua alcunha: Lobo. Manuel – Acordador – desperta os mortos ao comando de sua voz. Baptista – Tempestade – comanda chuvas, trovões e relâmpagos. Fernando – Espelho – pode transformar sua aparência na de qualquer pessoa que aviste. Guilherme – Inverno – é um manipulador do frio. E Miguel – Gentil – tem o maior dom de todos, mas só pode usá-lo uma vez a cada ciclo lunar. Por sorte da humanidade, esse é o vampiro mais “bonzinho”.

Os 150 anos passaram e Sétimo retorna do Inferno no século XV português. Porém, o vampiro volta ainda mais forte, com aparência monstruosa, podendo voar e até andar de dia. Muitos detalhes não são revelados, apenas que Sétimo se alia a Tobia – um descendente do Tobia original - para vencer de vez seus seis irmãos e Tobia o trai, encarcerando todos os sete vampiros em uma caixa de prata. Talvez nas próximas obras da saga mais detalhes da prisão dos sete sejam revelados. A caixa é então levada em uma caravela até a Ilha de Vera Cruz – atual Brasil -, para onde levavam os criminosos. Lá, a caravela é afundada com um tiro de canhão e os setes vampiros ficam por mais de quatrocentos anos nas profundezas do mar brasileiro. 


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quinta-feira, 17 de setembro de 2015

Resenha Literária: A Batalha do Apocalipse, de Eduardo Spohr

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A Batalha do Apocalipse
Da Queda dos Anjos ao Crepúsculo do Mundo

Por Thiago Damasceno

A batalha final do Universo se aproxima. As hostes celestiais lutarão uma última vez antes do despertar do Altíssimo. A humanidade, com suas próprias guerras, também caminha para o fim. No meio da linha de fogo está Ablon, o Anjo Renegado. Expulso do Céu após liderar uma revolta contra o autoritário arcanjo Miguel, o Renegado se vê como peça chave na política do mundo espiritual.

            Essa poderia ser uma premissa do livro de fantasia A Batalha do Apocalipse: Da Queda dos Anjos ao Crepúsculo do Mundo do jornalista, blogueiro, escritor, roteirista e nerd carioca Eduardo Spohr. 

Capa do Livro

         Em 572 páginas de prosa Spohr nos apresenta um universo ficcional que une o nosso mundo cotidiano – o mundo material – ao mundo espiritual, composto por dimensões como o Inferno, Paraíso, dimensão etérea, reino das fadas dentre outras de diversas mitologias.

Nascido em 1976 e sendo um nerd desde cedo, tendo viajado pelo mundo com seus pais, se formado em Comunicação Social e trabalhado como jornalista, Spohr escreve bem e mescla com maestria elementos de vários campos da cultura esotérica e popular, criando assim um universo rico, coerente e divertido. Como se diz no Nerdcast 80: O Apocalipse, o livro de Spohr não é uma mera farofa. Suas influências vão desde as mitologias grega e nórdica a obras como Highlander, Anjos Rebeldes (ambos filmes criados e roteirizados por Gregory Widen), animes como Dragon Ball e Cavaleiros do Zodíaco e filmes como os westerns de Clint Eastwood em que este encarna a figura do “pistoleiro solitário”. Apesar da miscelânea de referências, a ficção de Spohr não é uma mistureba sem sentido. A Batalha do Apocalipse estranhou – e ainda estranha - alguns leitores, mas a meu ver tudo fica nos eixos e tem sua identidade, bastando para isso abrir a mente e aceitar que sim, há escritores nacionais no gênero fantasia e ficção científica.

Fiz menção de denominar a obra como “ficção” para deixar isso bem claro a pessoas que possam levar o enredo do livro demasiado a sério – para o bem ou para o mal – devido às suas escolhas religiosas e eclesiásticas. A Batalha do Apocalipse, como o próprio nome denuncia, tem como foco a mitologia hebraico-cristã, expressa no Antigo e no Novo Testamento, mas outras visões religiosas são abordadas na obra. Há outros deuses e criaturas. Jeová - ou Yahweh - é apenas mais um, e o que saiu vitorioso das batalhas cósmicas. Essa abordagem é adequada para uma obra sobre o fim do Universo, temática que abarca outras concepções mitológicas e religiosas.  

Vamos conhecer essa ficção sobre o fim do mundo mais a fundo. Primeiramente farei um resumo do Universo da obra e de sua trama. Em seguida, comentarei alguns aspectos literários, elogiando sua narrativa mítica e épica, mas fazendo “vista grossa” à técnica narrativa no que concerne aos seus pontos de vistas e aos diálogos. Por fim, apresentarei um pouco sobre a história de criação e publicação do romance, um marco da cultura nerd e da atualmente chamada “literatura fantástica brasileira”. 

Eduardo Spohr
O Universo de A Batalha do Apocalipse

Das Batalhas Primevas ao Armagedon

            Nos primeiros tempos da existência do cosmos o deus Yahweh, da província da Luz, entrou em conflito com as entidades da província das Trevas, lideradas pela deusa Tehom. Para auxiliá-lo, Yahweh criou os cinco arcanjos: Miguel, Gabriel, Uziel, Rafael e Lúcifer. Juntos, os seis venceram as entidades das trevas e Yahweh reinou absoluto no Universo, principiando suas criações. Assim terminaram as chamadas Batalhas Primevas.

            No Sexto Dia de criação - que para a noção de tempo do Homem corresponde a milhões de anos – Yahweh criou a humanidade, dotada de alma imortal e livre arbítrio, diferente dos anjos, com almas mortais e sem livre arbítrio. Satisfeito com tudo que fez, inclusive com sua criação favorita, o Homem, o Altíssimo adormeceu e deixou o comando do Céu com o arcanjo primogênito, Miguel.

            Quando a Roda do Tempo - artefato criado por Yahweh para marcar a sucessão das eras - concluir seu ciclo, o mundo espiritual e o mundo material se unirão em um só, a Batalha do Armagedon se iniciará e o Altíssimo despertará para punir os injustos e coroar os justos. Assim afirma o Manuscrito Sagrado dos Malakins, casta angélica considerada a mais sábia e conhecedora dos segredos do Cosmos.

            No contexto do tempo presente de A Batalha do Apocalipse, o crepúsculo do Sétimo Dia se aproxima e os atores do Céu, da Terra e do Inferno se movem para a batalha final. 


A Ira dos Arcanjos

            Sentindo inveja e ciúme dos humanos, o arcanjo Miguel inicia uma série de ataques à Haled, denominação dada ao mundo dos homens. Nessas investidas, alguns anjos se destacam, dentre os quais Apollyon, o Anjo Destruidor, inimigo mortal de Ablon. Ambos pertencem à casta dos querubins, casta dos anjos guerreiros, e comandam legiões. 

            Outras cruéis investidas contra os humanos foram a destruição de Sodoma e Gomorra - pelas mãos de Apollyon - e o Dilúvio, por meio dos poderes dos ishins, casta angélica que comanda as forças da natureza. Um ishin envolvido diretamente no dilúvio foi Amael, o Senhor dos Vulcões, que carregou o arrependimento por toda sua vida.

            O dilúvio extinguiu as maiores civilizações dos primórdios da humanidade, que foram Enoque, a Bela Gigante, e Atlântida, a Pérola do Mar, chefiada por Órion, anjo amigo de Ablon. A dupla fraternal viveu em Atlântida nos seus tempos de glória, quando Órion criou uma civilização pacífica e desenvolvida, livre dos males e da violência. Os dois anjos levam nos seus semblantes a nostalgia daquele belo passado remoto. 

Ablon vs Apollyon

Os 18 Renegados & A Queda de Lúcifer

            Revoltado contra as arbitrariedades violentas de Miguel, Ablon incitou 17 anjos de sua confiança a se rebelarem contra os arcanjos. Ciente de que os arcanjos são invencíveis em poder, os revoltosos se uniram a um poderoso que mostrou certo desagradado com as atitudes de Miguel. Uniram-se a Lúcifer, a Estrela do Manhã. Porém, na assemble angélica em que se discutia a destruição de Sodoma e Gomorra, Lúcifer denunciou a conjuração de Ablon e Miguel condenou os 18 à Haled.

            Essa renegação significou que nenhum dos 18 poderia voltar ao mundo espiritual. Não poderiam atravessar o tecido da realidade.

            O mundo material e o mundo espiritual são separados por meio de uma membrana mística invisível, o chamado tecido da realidade. Essa membrana é criada pela consciência coletiva humana. Ou seja, a medida que os homens desenvolveram a ciência e o racionalismo, distanciando-se das práticas religiosas primitivas, o tecido da realidade se engrossou e o mundo espiritual revelou-se cada vez menos aos homens. Apenas os sensitivos e magos mais poderosos continuaram a ver e interagir com os seres e elementos das dimensões do mundo espiritual.

            Os anjos, ao irem para a Haled, encarnam em avatares, corpos físicos de aparências semelhantes aos seus corpos no mundo espiritual. Esses corpos, apesar de serem mais fortes e rápidos e terem asas, podem ser abatidos. Para acabar de vez com o avatar e a alma de um anjo, basta arrancar seu coração.

            Os 18 renegados ficaram para sempre presos em seus avatares, tendo que aprender a viver como homens e, enquanto se adaptavam à vida na Haled, Lúcifer ganhou prestígio junto a Miguel e usou disso para arquitetar sua própria conjuração, desejando vencer o irmão Miguel e coroar-se ele mesmo deus em Tsafon, o Monte da Congregação. Para isso, o arcanjo reuniu um terço dos anjos contra seu irmão, mas perdeu a peleja, sendo expulso para o Inferno.

            Enraivecido, Lúcifer passou a culpar os renegados e enviou demônios à Haled para caçá-los, sendo que Miguel também já enviava seus agentes para aterrorizar a vida dos 18. Com o tempo, eles foram sendo derrotados, principalmente pelas mãos de Apollyon, e Ablon se tornou o Último Renegado.

O Crepúsculo do Sétimo Dia

            A trama de A Batalha do Apocalipse começa, no tempo presente, com o encontro de Órion e Ablon no topo da estátua do Cristo Redentor no Rio de Janeiro, cidade escolhida por Ablon para viver por pertencer a um país neutro perante os conflitos militares, econômicos e políticos mundiais, realizados por dois grupos, a Liga de Berlim (EUA, Japão e Europa Ocidental) contra a Aliança Oriental (Rússia, China e Coréia do Norte).

            Órion exerce a função de Arauto - arquétipo do mensageiro – que leva uma mensagem ou missão para o Herói, arquétipo encarnado na estória por Ablon. A mensagem é nada mais, nada menos que uma visita ao Inferno: Lúcifer deseja falar com o Anjo Renegado. Este aceita se encontrar com Lúcifer, mas não sem antes se proteger com a ajuda de Shamira, uma bela feiticeira que ele conheceu na Antiguidade, nos tempos de poderio de Babel na Mesopotâmia. O casal se encontrou em tempos importantes da história da civilização como na queda de Babel, no auge de Roma, na Idade Média e na conquista de Constantinopla pelos turcos otomanos em 1453. Utilizando a força de espíritos negros, Shamira conseguiu manter sua juventude por séculos a fio, tudo com o intuito de um dia poder viver pacificamente com seu amado Ablon.

            O contratempo para a consumação do amor entre os dois é o rapto de Shamira pelas mãos do Anjo Negro ou Anjo do Abismo Sem Fundo, um misterioso agente de Miguel.

            Enquanto a Batalha do Armagedon se aproxima, Ablon precisa decidir se alia-se ou não com Lúcifer para enfrentar Miguel e encontrar um jeito para entrar no mundo espiritual e liderar os anjos contra o arcanjo primogênito, obtendo assim justiça e salvando sua amada. No caminho, nosso Herói enfrenta vitórias e derrotas e encontra inimigos e aliados.

Ablon
        Por falar no enredo, aproveito para registrar que minha parte favorita do livro é o ataque de Ablon a Babel para salvar Ishtar. É uma verdadeira cena épica com um andarilho encapuzado no deserto, um rei louco, um exército bem armado e uma cidade lendária, com uma construção icônica como a Torre de Babel. Essa passagem ficaria exuberante em um filme.

Também adorei o final do livro, resolvendo tudo, sem deixar pontas soltas e a trazer de volta pistas e soluções que o leitor esquece no decorrer da narrativa, mas que sempre estiveram lá. As consequências do conflito apocalíptico fecham com maestria o início da estória, dando a ela um tom mítico.  

Aspectos Literários

A Batalha do Apocalipse: Um Épico

            Eduardo Spohr optou por um narrador que faz uso de um discurso épico, opção adequada para uma estória sobre a trajetória milenar de Ablon, abarcando desde os primórdios da vida humana na Terra até o início dos anos 2000, contexto do fim do Sétimo Dia.
            Ablon encarna o Herói padrão. É honrado, corajoso, valoroso e defensor da justiça. Na vez em que perdeu a cabeça, nos tempos humanos da Idade Média, decidiu enfrentar Lúcifer no Inferno e foi mal, sendo preso por 200 anos e condenado à morte. Foi salvo graças à Órion, seu amigo fiel e Lilith, demônia que vivia em meio ao luxo e prazer. A relação entre Ablon e Órion é de confiança total, semelhante a de Dom Quixote e Sancho Pança e muitos outros. É a relação chamada “Amor de Companheiro”. A relação breve entre Ablon e Lilith remete ao amor proibido, do mito de Orpheu. Essa relação mitológica também perpassa a vivência entre Ablon e Shamira, sendo notável o esforço desta para acompanhar seu amado pelo passar dos séculos.

            Miguel é o vilão principal, encarnado o arquétipo Sombra, cujos valores representam a energia do lado escuro São valores opostos aos do Herói. Lúcifer encarna predominantemente – pois também é uma Sombra – o arquétipo Camaleão, um ser mutável, que dissimula. Como ele mesmo e o ditado popular afirmam: “O Diabo tem muitas faces”.
            Sendo um épico, A Batalha do Apocalipse inicia com o Manuscrito Sagrado dos Malakins referindo-se a um tempo mitológico, ou seja, a um pseudotempo, muito distante e remoto, que vai além da nossa forma matemática de contar as eras (BORGES, 1986): “Há muitos e muitos anos, há tantos anos quanto o número de estrelas no céu, o paraíso celeste foi palco de um terrível levante” (SPOHR, 2014, p. 9). Nossa mente não pode contar com precisão esse tempo e, no final, ele se mostra ainda mais mitológico.

Narração

             O narrador da ficção escatológica é onisciente e seu foco ou pessoa narrativa é a terceira pessoa do singular, com traços de impessoalidade. Farei “vista grossa” à questão técnica do ponto de vista, que é a perspectiva a partir da qual se conta a estória.

O ponto de vista predominante em A Batalha do Apocalipse é o do seu protagonista, Ablon, mas esse ponto de vista sempre é transferido para outros personagens durante as cenas. Por exemplo, em determinada luta sabemos o que Ablon vê e pensa, e linhas depois ficamos sabendo o mesmo do seu oponente. Como David Lodge (2011) afirma em seus artigos sobre a escrita de ficção, mudanças de pontos de vista não são proibidas, são feitas segundo as escolhas do autor, mas uma consistência mal organizada desse aspecto técnico não contribui para a formação de sentido da obra, formação feita com a leitura.

Claro, não há regras nem leis determinando que um romance não possa mudar de ponto de vista quando o autor bem entender; mas se essa decisão não for tomada de acordo com algum plano ou princípio estético, o envolvimento do leitor, o processo em que o sentido do texto se produz, será perturbado. (LODGE, 2011, p. 38).

            Outra questão que surge nessa mudança inconsistente de pontos de vistas é: por que temos conhecimento do que um personagem sente, vê e ouve em certo momento e em outro não?

            Como dito, tratando-se de criação, não há regras. Mas particularmente, prefiro pontos de vistas mais consistentes, porém, as mudanças inconsistentes do ponto de vista de A Batalha do Apocalipse não atrapalharam meu envolvimento com a estória, como alerta o crítico e escritor David Lodge. Muito pelo contrário: o enredo em si já capta e mantém a atenção de qualquer nerd ou aficionado pelas temáticas do livro.   

            Outro ponto que quero destacar são os diálogos. Alguns amigos confessaram-me que não acharam as falas convincentes, que as pessoas no dia a dia não falam daquele modo, etc. De fato, os personagens falam em um tom formal, mas acho esse tom consistente com a trajetória dos mesmos porque eles viveram muitos anos e são sábios. São anjos, demônios, magos e bruxas. O que não achei convincente foram algumas sentenças em que há diálogos que explicam demais ou mencionam o que o leitor já sabe sobre a estória, como o que Ablon diz a Órion:

“- Eu sou um anjo renegado, o último ainda vivo. Estou condenado a viver neste mundo físico. Não posso mais cruzar o tecido da realidade como vocês. Mas não é preciso ser muito esperto para notar que o Armagedon se aproxima” (SPOHR, 2014, p. 21).

            É estranho um personagem falar de tal modo sobre si mesmo, ainda mais para um amigo que o conhece há tempos. Sem contar que, tecnicamente, esse breve resumo sobre o personagem cabe perfeitamente à voz do narrador ou à voz de um personagem explicando a um terceiro.

            Por falar em personagens, creio serem válidas algumas considerações.

            Dos personagens mais ativos de A Batalha do Apocalipse, apenas uma é genuinamente humana: Shamira, a Feiticeira de En-Dor.  Nem por isso a empatia deixa de ser feita, pois os demais personagens, principalmente Ablon e Órion criam uma forte empatia devido aos seus valores humanos.

            Parece-me que, com exceção de Lúcifer, todos os personagens da obra são simples ou planos, pois suas caracterizações são feitas de forma rápida e direta e seus atributos permanecem, tornando-os personagens previsíveis. No caso dos anjos e demônios, pelas suas próprias naturezas, é normal que permaneçam sempre os mesmos. Já Shamira... creio que poderia ser mais bem trabalhada. É uma humana muito bonita e inteligente que passa todas as eras apaixonada por uma criatura apenas, Ablon! Mas ela exerce bem sua função de “princesa a ser resgatada pelo mocinho”, já que é raptada por Miguel, assim como a figura mitológica da princesa Andrômeda, prisioneira do monstro Kraken e a à espera de seu herói, Perseu.

            Lúcifer aparenta ser um personagem mais complexo, pois têm motivações contra os humanos ao mesmo tempo em que parece ter saudade dos dias em que viveu junto ao Criador. Ou tudo isso pode ser mera dissimulação sua. O que se passa em sua mente não é claro. Sendo o Príncipe das Trevas, tudo se pode esperar dele. Talvez o fato de ele ser um personagem mais trabalhado venha da variada quantidade de fontes sobre essa sinistra figura religiosa e mitológica, fontes que influenciaram a criação de Spohr.

           Ablon tem muito dos personagens Conan MacCleod, Goku, Seya e do tipo “pistoleiro solitário” de Clint Eastwood. Com ele, ocorre o mesmo que

ocorre com personagens centrais de narrativas de consumo de massa como por exemplo, nos filmes em série de televisão: os traços do herói já são conhecido e, em cada novo filme, ele vai confirmar os mesmos traços. Assim, ele sempre aparecerá em situações que confirmarão o fato de ele ser “corajoso”, “justo”, etc. – um comportamento previsível. (JUNIOR, 1995, p. 20).

            Apesar de ser um personagem simples, a trajetória de Ablon não é coroada apenas por vitórias, mas também por derrotas e obstáculos.

Mais um aspecto técnico que destaco no livro são seus capítulos e ganchos. A organização dos capítulos e seus ganchos – indo entre o passado e o presente, com Ablon tendo flashbacks – são excelentes. A leitura de A Batalha do Apocalipse é viciante. Como interromper a leitura após ler algo como o trecho a seguir?

Determinado, decidiu que, desta vez, entraria em Jerusalém e não retrocederia de novo.
Por um segundo, o Primeiro General fechou os olhos e, em um único instante recordou-se daquela que, provavelmente, fora a mais célebre de suas aventuras. (SPOHR, 2014, p. 204).
           
            Outra questão, não puramente literária, é o tratamento dado à Idade Média (século V ao XV). Sendo formado em História, atentei à abordagem dada àquele período, considerado nefasto. “Aconteceu naqueles dias sombrios, durante a chamada Idade das Trevas. Tempos sangrentos eram aqueles...” (SPOHR, 2014, p. 383).

            A ideia de Idade Média como Idade das Trevas é um mito criado pelos eruditos modernos para justificarem seu próprio tempo, visto como progressista e racional, em contraste com os tempos medievais, tempos com avanços e retrocessos como quaisquer outros. Quem divulgou essa ideia de Idade Média como um período sombrio foi o pedagogo alemão Christoph Keller (1638-1707), em latim Cellarius, mas claro que, sendo uma obra de ficção e entretenimento, A Batalha do Apocalipse não precisa discutir a fundo essa questão.

Criação e Publicação de A Batalha do Apocalipse

            O romance de Eduardo Spohr foi publicado pela primeira vez – com tiragem de 100 cópias - com sua vitória no II Concurso Literário do Fábrica de Livros do Senai-RJ. Essas tiragens foram vendidas no site Jovem Nerd, de forma independente. Ao fim das 100 cópias, leitores pediram mais, desejo atendido quando Spohr e os demais membros do site imprimiram mais cópias. Essa “etapa” da obra passou por várias reimpressões, atendendo a uma demanda sempre crescente, vendendo mais de 4 mil exemplares entre 2007 e 2009.

Em 2010 A Batalha do Apocalipse foi publicada pela Verus, vendendo mais de 400 mil exemplares desde seu lançamento. Outras obras do autor lançadas pela mesma editora foram Protocolo Bluehand: Alienígenas (2011) e a Trilogia Filhos do Éden: Herdeiros de Atlântida (2011), Anjos da Morte (2013) e Paraíso Perdido (2015). Este último foi lançado há poucos dias.

Ainda segundo o site oficial do escritor, Spohr foi premiado em 2012 pela Fundação Luso-Brasileira na categoria “revelação”. Seus livros foram publicados na Holanda, Alemanha e Portugal, com direitos de suas obras sendo vendidos para a Turquia.

A ampulheta do Tempo não cessa e por isso devemos esperar mais obras de aventura e ação desse autor. 


Referências

A Batalha do Apocalipse (Site Oficial). Sobre o Autor. Disponível em http://www.abatalhadoapocalipse.com/. Acesso em 16/09/2015.

BORGES, Vavy Pacheco. O Que é História. São Paulo: Brasiliense, 9ª edição, 1986.

Jovem Nerd (Site Oficial). Nerdcast n° 80: A Batalha do Apocalipse. Disponível em http://jovemnerd.com.br/nerdcast/nerdcast-80-a-batalha-do-apocalipse/. Acesso em 30/08/15.

JUNIOR, Benjamin Abdala. Introdução à Análise da Narrativa. São Paulo: Scipione, 1995.

LODGE, David. A Arte da Ficção. Porto Alegre, RS: L&PM, 2011.

SPOHR, Eduardo. A Batalha do Apocalipse: Da Queda dos Anjos ao Crepúsculo do Mundo. Campinas, SP: Verus, 57ª edição, 2014.

VOGLER, Christopher. A Jornada do Escritor: Estruturas Míticas Para Contadores de Histórias e Roteiristas. Rio de Janeiro: Ampersand Ed., 1997. 


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