ThiagoDamasceno: setembro 2019

terça-feira, 10 de setembro de 2019

CRÔNICA: Inocência Devastada


Um fantasma ronda o centro de Goiânia: eu. Vagava pelas ruas pensando em um texto para esta semana. No fim do passeio noturno, o tema se manifestou: crianças em situação de rua.
Voltei para casa em uma bike comunitária. Quando a devolvi em uma das estações, um garoto puxou conversa. Já o vi antes, largado pelas ruas, mas hoje ele estava sóbrio, vestido, calçado, limpo e com uma mochila enorme. Estava ali a esmo, mexendo nas bikes estacionadas. Montou em uma e disse:
- Nossa, tio, tô com raiva dum cara. Fui tirar a bike aqui e na hora ele montou e saiu correndo. Vagabundo... Se eu achar ele, vou matar ele.
- Precisa matar não, moço – respondi.
Eu tinha duas garrafas com água. Ele pediu e lhe dei uma. Ele bebeu em poucos gut-guts. Depois, pediu a outra garrafa. Falei que precisaria dela, sorri e parti.
Saí apressado devido a uma mensagem no meu Whatsapp. Era algo que eu precisava solucionar de casa o quanto antes. Porém, chegando ao lar doce lar, vi que meu problema era bem classe média: relativamente fácil de resolver, nada ameaçador à sobrevivência da civilização. Então evoquei aquele garoto falando sobre o “roubo” da bike.
Foi engraçado o seu pobre fingimento de indignação. Sua imaginação infantil se expressou com uma mentirinha boba para puxar conversa. Raciocinei que ele não tem cartão de crédito para comprar um passe pelo aplicativo para destravar uma das bikes. Logo, impossível alguém ter roubado a bicicleta que ele nunca havia liberado!
Recordei que ele também queria minha outra garrafa. Talvez para usar crack, como já o vi. Ele ainda tem a inocência tecedora de mentirinhas bobas, mas ela declina em ruínas junto com a civilização.
Então me senti como o narrador do grande poema Tabacaria: “E o universo reconstruiu-se-me sem ideal nem esperança”.
Mas nenhum dono de tabacaria sorriu.

 09 de setembro de 2019


quarta-feira, 4 de setembro de 2019

CRÔNICA: Os Desejáveis Indesejáveis do Sistema


Um dia desses eu empurrava esta carcaça chamada corpo pelo centrão de Goiânia quando passei ao lado de um indivíduo horripilante. Suas roupas eram farrapos! Seu cabelo era um emaranhado de seboseira! Sua pele era uma crosta escura de sujeira! Ele era um verdadeiro arauto da Derrocada da Civilização!
Denominei-o de “indivíduo” porque creio que ele não tem RG, CPF, tampouco Certidão de Nascimento. Talvez ela não exista para a burocracia do poder público. É um desses desejáveis indesejáveis do sistema.  
É indesejável porque poucos o toleram por perto, então a maioria finge não vê-lo. Mas ao mesmo tempo, sua existência miserável é aceita. Em suma, é uma presença que encaramos como ausência.
E ele é desejável porque nosso modo de vida produz e precisa desses miseráveis. É fato que o capitalismo produziu alguns avanços. Mas a que custo? E, principalmente, para quem? Nossa civilização necessita desses indivíduos horripilantes. Eles convêm. Para haver o bem-aventurado, é preciso que também exista o mal-aventurado. Para haver os viventes apressados, é preciso que também existam os defuntos ambulantes.  
E chegamos ao ponto (des)civilizacional de alguns (des)formadores de opinião proclamarem coisas como “Tá com pena? Leva pra casa!”.
São coisas tristes de se ouvir.
E todo maldito dia encontramos mais e mais arautos da Derrocada da Civilização.


O BICHO
(Manuel Bandeira)

Vi ontem um bicho
Na imundície do pátio
Catando comida entre os detritos.


Quando achava alguma coisa,
Não examinava nem cheirava:
Engolia com voracidade.


O bicho não era um cão,
Não era um gato,
Não era um rato.


O bicho, meu Deus, era um homem.