ThiagoDamasceno: 2019

sábado, 2 de novembro de 2019

Podcast: Ogro Historiador

Saudações!

Como alguns sabem, contribuo para o site Ogro Historiador. Há poucos dias iniciamos mais uma fase desse projeto, que já está fazendo 1 ano, lançando o nosso podcast!

Nesse primeiro episódio, Hugo David, Wendryll e Johnny conversaram sobre História, temporalidades e o papel do historiador. Em breve, participarei comentando sobre Islã, Oriente e outros temas de História.

Ouçam e, se possível, deem uma força compartilhando! 

Muitíssimo obrigado!



terça-feira, 10 de setembro de 2019

CRÔNICA: Inocência Devastada


Um fantasma ronda o centro de Goiânia: eu. Vagava pelas ruas pensando em um texto para esta semana. No fim do passeio noturno, o tema se manifestou: crianças em situação de rua.
Voltei para casa em uma bike comunitária. Quando a devolvi em uma das estações, um garoto puxou conversa. Já o vi antes, largado pelas ruas, mas hoje ele estava sóbrio, vestido, calçado, limpo e com uma mochila enorme. Estava ali a esmo, mexendo nas bikes estacionadas. Montou em uma e disse:
- Nossa, tio, tô com raiva dum cara. Fui tirar a bike aqui e na hora ele montou e saiu correndo. Vagabundo... Se eu achar ele, vou matar ele.
- Precisa matar não, moço – respondi.
Eu tinha duas garrafas com água. Ele pediu e lhe dei uma. Ele bebeu em poucos gut-guts. Depois, pediu a outra garrafa. Falei que precisaria dela, sorri e parti.
Saí apressado devido a uma mensagem no meu Whatsapp. Era algo que eu precisava solucionar de casa o quanto antes. Porém, chegando ao lar doce lar, vi que meu problema era bem classe média: relativamente fácil de resolver, nada ameaçador à sobrevivência da civilização. Então evoquei aquele garoto falando sobre o “roubo” da bike.
Foi engraçado o seu pobre fingimento de indignação. Sua imaginação infantil se expressou com uma mentirinha boba para puxar conversa. Raciocinei que ele não tem cartão de crédito para comprar um passe pelo aplicativo para destravar uma das bikes. Logo, impossível alguém ter roubado a bicicleta que ele nunca havia liberado!
Recordei que ele também queria minha outra garrafa. Talvez para usar crack, como já o vi. Ele ainda tem a inocência tecedora de mentirinhas bobas, mas ela declina em ruínas junto com a civilização.
Então me senti como o narrador do grande poema Tabacaria: “E o universo reconstruiu-se-me sem ideal nem esperança”.
Mas nenhum dono de tabacaria sorriu.

 09 de setembro de 2019


quarta-feira, 4 de setembro de 2019

CRÔNICA: Os Desejáveis Indesejáveis do Sistema


Um dia desses eu empurrava esta carcaça chamada corpo pelo centrão de Goiânia quando passei ao lado de um indivíduo horripilante. Suas roupas eram farrapos! Seu cabelo era um emaranhado de seboseira! Sua pele era uma crosta escura de sujeira! Ele era um verdadeiro arauto da Derrocada da Civilização!
Denominei-o de “indivíduo” porque creio que ele não tem RG, CPF, tampouco Certidão de Nascimento. Talvez ela não exista para a burocracia do poder público. É um desses desejáveis indesejáveis do sistema.  
É indesejável porque poucos o toleram por perto, então a maioria finge não vê-lo. Mas ao mesmo tempo, sua existência miserável é aceita. Em suma, é uma presença que encaramos como ausência.
E ele é desejável porque nosso modo de vida produz e precisa desses miseráveis. É fato que o capitalismo produziu alguns avanços. Mas a que custo? E, principalmente, para quem? Nossa civilização necessita desses indivíduos horripilantes. Eles convêm. Para haver o bem-aventurado, é preciso que também exista o mal-aventurado. Para haver os viventes apressados, é preciso que também existam os defuntos ambulantes.  
E chegamos ao ponto (des)civilizacional de alguns (des)formadores de opinião proclamarem coisas como “Tá com pena? Leva pra casa!”.
São coisas tristes de se ouvir.
E todo maldito dia encontramos mais e mais arautos da Derrocada da Civilização.


O BICHO
(Manuel Bandeira)

Vi ontem um bicho
Na imundície do pátio
Catando comida entre os detritos.


Quando achava alguma coisa,
Não examinava nem cheirava:
Engolia com voracidade.


O bicho não era um cão,
Não era um gato,
Não era um rato.


O bicho, meu Deus, era um homem.

terça-feira, 20 de agosto de 2019

CRÔNICA: Música Não é Religião, Mas Também Arrebata!


Assim como deve ter sido para a maioria dos brasileiros e brasileiras, minha semana passada não foi fácil. Não bastassem desventuras na vida pessoal, sabemos muito bem como anda o contexto político-social do país. Quem tem um mínimo de sensibilidade há de concordar comigo: é um golpe (ou até mais) a cada dia! Mas nem tudo são trevas... a arte está aqui, ali e acolá para provar isso! E dentre todas as formas artísticas, destaco aqui a música!
Música não é religião, mas também arrebata! E semana passada, fui arrebatado três vezes por três obras musicais distintas. Mas o que é esse arrebatar da arte?
Creio que ele é semelhante ao arrebatamento presente nas narrativas e imaginários religiosos. É quando você entra em contato com a manifestação de algo e esse algo te transporta, no nível da consciência, para um outro plano, para uma outra realidade, realidade essa mais bela, mais prazerosa, mais reconfortante, mais emocionante, enfim, uma realidade com mais êxtase. Não é à toa que o Minidicionário Escolar Aurélio (2000), dentre outras explicações, define o verbo “arrebatar” como “enlevar, extasiar”.
Em entrevista ao jornal El País em 2018, a estudiosa de religiões Karen Armstrong comparou a transcendência religiosa com o transe musical: “A música é significado sem palavras. Nos toca profundamente. É uma arte física, não uma viagem mental. Durante muito tempo, os instrumentos foram fabricados com tripas e tendões, algo muito físico, mas ao mesmo tempo [a música] é misteriosa porque chega até nós sem palavras e ajuda na nossa própria transcendência”. 
Mas voltando a tema principal deste texto... quais obras abalaram meu coração e minha mente?
A primeira foi o álbum “Moving Waves” (1971), da banda holandesa Focus, um dos grandes nomes do rock progressivo. Nas seis faixas do disco, os instrumentos predominam. Os arranjos harmoniosos garantem expressividades riquíssimas que lembram trilhas sonoras belíssimas de filmes clássicos. A impressão que tenho, ao ouvir esse disco, é que estou dentro de um grande filme, daqueles divisores de água na sétima arte.
O segundo arrebatamento veio com o álbum “Ashes Are Burning” (1973), da banda Renaissance, de mesmo gênero do grupo anterior, mas de origem inglesa. Sem dúvida, o destaque da banda é o vocal de Annie Haslam, de uma beleza e afinação únicas! O instrumental da banda, que mescla guitarras elétricas e levadas mais folks ao piano e ao violão, não fica para trás.
Por último, uma amiga herdeira de Frida Kahlo, recém-chegada do planeta México, me indicou a canção “Pai e Mãe”, do grande Gilberto Gil. Essa música, quarta faixa do álbum “Refazenda” (1975), é um brinde à psicanálise. O eu-lírico da letra expressa que suas relações com outros homens e mulheres são extensões de suas relações com o pai e a mãe, respectivamente:

Eu passei muito tempo aprendendo a beijar
Outros homens como beijo o meu pai
Eu passei muito tempo pra saber que a mulher
Que eu amei, que amo, que amarei

Será sempre a mulher como é minha mãe”.

            Apesar da temática profunda, a canção é meiga e suave. Curiosamente, não carrega em si o peso dramático que há nos estudos de Sigmund Freud. Para quem tem (ou quer ter) um “espírito livre”, “Pai e Mãe” pode ser encarada como uma espécie de doce confissão de amor. Para a legatária de Dona Kahlo, “Pai e Mãe” é um complexo de Édipo resignado, em paz.
Pois bem, caras leitoras e caros leitores, esses foram meus arrebatamentos da semana passada. Já sinto até saudades dos momentos únicos de euforia que tive ao descobrir essas obras, mas tenho certeza que a arte, como um todo, ainda me revelará muitos e muitos momentos de êxtase!

Thiago Damasceno, 18 de agosto de 2019

quarta-feira, 24 de julho de 2019

LEITURA DA VEZ: “Eu Sou a Lenda”, de Richard Matheson


“Eu Sou a Lenda” (“I am Legend”, no original) narra o cotidiano de Robert Neville, o último homem na Terra após a disseminação de uma praga que transformou todos os seres humanos em vampiros. De dia, Neville cuida da segurança de sua casa, procura por suprimentos pela cidade e mata alguns vampiros adormecidos que encontra pelo caminho. De noite, Neville fica enclausurado no seu lar, protegido dos vampiros que, inclusive, sabem onde ele mora e ficam chamando-o do lado de fora de sua casa, sedentos por seu sangue.



Nessa trama, publicada originalmente em 1959, o escritor estadunidense Richard Matheson (1926-2013) mescla com maestria, coerência e coesão elementos dos gêneros horror, terror, fantasia e ficção científica. Não é à toa que suas obras influenciaram outros criadores na cultura pop, como Stephen King (1947-) e George Romero (1940-2017), e obras posteriores contextualizadas em cenários de fim do mundo e/ou de apocalipse zumbi. Vale ressaltar que Matheson escreveu alguns roteiros da série clássica “The Twilight Zone” (“Além da Imaginação”) e outros trabalhos literários não diretamente relacionados ao horror ou ao terror.

            Apesar de ter recebido influências de obras anteriores - como “Drácula”, de Bram Stoker (1847-1912) - Matheson apresenta vampiros mais semelhantes a mortos-vivos desesperados por sangue do que vampiros elegantes e astutos. Curioso é o tom científico da obra que, às vezes, gera até humor: pesquisando sobre a natureza da praga vampiresca e sobre o porquê de os vampiros morrerem com elementos como estaca no coração, luz do Sol e alho, Neville questiona, por exemplo, se um vampiro muçulmano poderia temer a cruz. Além disso, com o fluxo de consciência do personagem principal – por meio da técnica do discurso indireto livre – nós, leitores, temos acesso aos pensamentos e à vida íntima de Neville, contribuindo assim para a geração de simpatia entre nós e o protagonista.

A narrativa de Matheson nos apresenta um mundo novo e terrível aos poucos, de forma crível. Com a leitura de poucas páginas já somos fisgados para aquele contexto apocalíptico onde as indagações existenciais de Neville sobre a solidão e o sentido da existência humana representam nossas próprias reflexões. Contudo, quando menos se espera, o cotidiano de Neville – tedioso para o personagem, mas interessante para nós – sofre uma reviravolta com o surgimento de uma nova personagem, que leva ao desfecho surpreendente e impactante do livro.

Sem sombra de dúvidas, “Eu Sou a Lenda” é leitura obrigatória para os amantes de fantasia e ficção científica.

P.S.: “Eu Sou a Lenda” foi adaptado três vezes para o cinema:
 1 – “The Last Man On Earth” (“Mortos que Matam”), de 1964, dirigido por Ubaldo Ragona e Sidney Salkow;
2 – “The Omega Man” (“A Última Esperança da Terra”), de 1971, dirigido por Boris Sagal;
3 – “I am Legend” (Eu Sou a Lenda”), de 2007, dirigido por Francis Lawrence. 

Livro na Amazon: https://amzn.to/2XQiyK0


sexta-feira, 19 de julho de 2019

LEITURA DA VEZ: "Tristessa", de Jack Kerouac

       Hoje terminei a leitura do romance "Tristessa", do autor beat estadunidense Jack Kerouac (1922-1969), mais conhecido pela obra "On The Road" ("Pé na Estrada").


       "Tristessa" foi publicado pela primeira vez em 1960 e, assim como as outras obras de Kerouac, é autobiográfica, inspirada na paixão que o autor cultivou, em 1955, por uma prostituta mexicana chamada Esperanza.
       No romance, o poeta Jack viaja à Cidade do México e se apaixona por Tristessa, uma prostituta viciada em morfina. Apesar disso, o poeta narra suas aventuras e sua paixão com muita delicadeza, carinho e afeto. Uma das marcas de Kerouac - além de sua rica prosa poética bastante musicalizada - é a glorificação que ele faz dos marginalizados da sociedade, dando voz e ouvidos a personalidades interessantes e surpreendentes.
       Outros aspectos marcantes em "Tristessa" são os discursos religiosos, presentes de duas maneiras: na divinização de Tristessa - colocando-a como uma espécie de anja caída ou como uma santa em decadência - e na transmissão de ensinamentos budistas sobre a transitoriedade da existência e sobre os desejos humanos. Desses procedimentos vem minha frase preferida da obra: "[...] a beleza das coisas deve estar no fato de terminarem".

Livro na Amazon: https://amzn.to/2XYFoKE

CRÔNICA: Trabalhar Não é Mandamento Divino, é Castigo!


       Era um típico fim de tarde quando fui até uma vendedora, instalada em uma calçada no centrão de Goiânia, comprar queijo e algumas frutas. Enquanto eu escolhia, um senhor parou ao lado da banca, observou tudo e, em seguida, falou à vendedora:
- Só ralando, né? Batalhando... Isso aí! Deus ajuda quem trabalha! Foi assim que ele mandou lá no Livro! Do suor do teu rosto comerás!
       Depois, ele seguiu sua vida.
       Achei engraçado o tom pomposo de sua voz ao falar aquele discurso e o brilho do seu olhar para a vendedora, como se o simples ato de trabalhar, por parte dela, fosse consertar todas as mazelas do mundo. Aos olhos daquele senhor, a vendedora estava envolta por uma aura de santidade e salvação. Ela era a nova Messias. Contrariando o que está escrito na Primeira Epístola de São João, 5: 19, o mundo não ficaria mais sob o poder do Maligno, pois ali estava uma mulher genuinamente trabalhadora para nos salvar.
       Também chamou minha atenção a interpretação daquele senhor acerca da mensagem bíblica sobre o trabalho, interpretação essa que já vi ser defendida por outras pessoas em outros contextos. Nesse modo de entender a Bíblia, muitos consideram o trabalho como um mandamento divino, a exemplo dos 10 Mandamentos das tábuas de Moisés. Nada mais equivocado! Essa interpretação não tem sentido quando se lê o texto bíblico com profundidade. O capítulo 3 do livro de Gênesis relata que, após comerem o fruto da árvore do meio do Jardim do Éden, Adão e Eva percebem-se nus, sem suas típicas inocências. Ao perceber o ocorrido, Deus puniu a serpente e o casal primordial, dizendo a Adão o seguinte:
       “(...) Porque escutaste a voz de tua mulher e comeste da árvore que eu te proibira comer, maldito é o solo por causa de ti! Com sofrimentos deles te nutrirás todos os dias de tua vida. Ele produzirá para ti espinhos e cardos, e comerás a erva dos campos. Com o suor de teu rosto comerás teu pão até que retornes ao solo, pois dele foste tirado. Pois tu és pó e ao pó tornarás”. (Gênesis 3: 17-19).
       É mais coerente interpretar que essa passagem mítico-religiosa transmite a ideia de que o trabalho foi uma punição, um castigo à Humanidade devido à sua desobediência às ordens divinas, levando à expulsão Homem e da Mulher do Paraíso, local em que não havia nenhum tipo de sofrimento, onde o trabalho para a sobrevivência não era necessário. 
      Além disso, a depender das diabólicas reformas trabalhista e previdenciária, nós, brasileiros, seremos ainda mais expulsos do nosso “Paraíso tropical”, sendo cada vez mais e mais castigados com um modo de trabalho precário, mal remunerado e carente de direitos.

       Que Deus nos ajude!

15 de julho de 2019