ThiagoDamasceno: 2020

segunda-feira, 28 de dezembro de 2020

CRÔNICA: 2020 à la Kafka

Se 2020 fosse servido como prato em um restaurante, com certeza carregaria no seu título a expressão “à la Kafka”, fazendo referência a Franz Kafka (1883-1924). Kafka foi um importante escritor tcheco de língua alemã, criador de clássicos que abordam o absurdo e a alienação humana como “A Metamorfose” (1915) e “O Processo” (1925).

            Não testemunhei horrores globais como as duas guerras mundiais e outras pandemias, assim, 2020 está marcado para mim – e para muitos outros brasileiros e brasileiras com sensibilidade social – como um ano de absurdos! É um ano que vai se encerrando mais com agonia e inquietação do que com esperanças...

            Não bastassem a pandemia e as enormes cifras diárias de mortos, chefes de quadrilhas sádicos nos governam. Não bastassem os escândalos de corrupção em que sempre estão envolvidos, essas figuras ainda são reverenciadas por uma horda de idiotas alimentados por ódios e fake news. Se esses bandidos permanecem no poder até agora, o que os próximos precisarão fazer para serem retirados? Matar suas mães a pauladas ao vivo no Fantástico?

            Nosso país está podre até os ossos. Nossos governantes são criminosos, nossas instituições são falhas e corruptas, verdadeiras máfias. Nossa moral pública é perversa: estão normatizados o racismo, o estupro, o feminicídio, a intolerância religiosa, a xenofobia e demais crimes. Nossa democracia está morta e na cova, mas ainda insepulta, pois cada absurdo nosso de cada dia é uma nova pá de terra.

            É como se vivêssemos no nosso próprio enterro sem fim!

            Está tudo tão corrompido e às avessas que este meu discurso pode ser confundido com o discurso de algum direitista mau caráter que visa dar palco a algum salvador da pátria que, claro, de salvador não teria nada. Contudo, ainda bem que sou de esquerda e esclarecido politicamente. Tão esclarecido que às vezes me pergunto se a ignorância não seria mesmo uma benção...

Nesse balaio de gatos alucinados que virou o Brasil ainda estão os terraplanistas e os estúpidos com mais medo da vacina do que do próprio corona vírus: é uma alienação enorme! A extrema direita corrompeu tudo, até mesmo símbolos nacionais como a bandeira, pois não se pode mais andar por aí com a bandeira do país sem ter medo de ser confundido com algum desses patéticos da direita que relincham em português!  

Mas calma: se um dia você se sentir idiota, lembre-se que tem quem ache Olavo de Carvalho um excelente professor!

            Como historiador, sei que é comum que pessoas que testemunham momentos de crise social vejam seu tempo como “o fim do mundo”. Apesar de conhecer essa constatação de forma objetiva, o sentimento de fim do mundo habita meu ser. Será que nossa civilização dura ainda uns dois séculos? Creio que não. Do jeito que o neoliberalismo explora a nós e aos recursos naturais, nossas expectativas de vida enquanto civilização andam baixas.

            Como eu disse no começo do texto, 2020 se encerra mais com agonia e inquietação do que com esperanças, pois são muitos os problemas e absurdos sociais pelos quais passamos. Assim, qualquer felicitação educada e tradicional de “Feliz ano novo!” para mim serão meras palavras jogadas à tempestade.

            Os votos que faço para 2021 é que consigamos sobreviver, pois viver em paz seria um luxo. Espero que o futuro mostre que esta minha desesperança está errada.  

“Eu tenho a verdadeira sensação de mim mesmo apenas quando eu estou insuportavelmente infeliz” (Franz Kafka)

Thiago Damasceno, 28 de dezembro de 2020 

CRÔNICA: Coração Cervejeiro Enlutado

Meu coração cervejeiro está de luto...

Abri as redes sociais e dei de cara com um post do Belgian Dash declarando o fim de suas atividades. Era meu pub preferido, point de encontro de amizades e um verdadeiro santuário de paz e reflexões existenciais em meio à balbúrdia urbana.

            O Belgian Dash foi aberto aqui em Goiânia em 2006. Segundo Edson Carvalho Jr do site “Viajante Cervejeiro”, o Belgian foi o pub pioneiro na cidade na cultura de cervejas especiais e artesanais, contendo quatro chopeiras e uma média de 160 rótulos em sua adega.

            Claro que hoje há outros pubs por aqui, mas nenhum com um acervo tão rico e uma ambiente tão aconchegante e com músicas tão boas como o Belgian tinha... Nada como beber uma saborosa cervejinha gelada ouvindo um rockão antigo e um blues daqueles de reverberar no fundo da alma!

Comecei a frequentar o Belgian em 2014. A relação se desenvolveu a tal ponto que eu nem precisava mais fazer pedido. O garçom me via e perguntava:

- O de sempre?

Após minha afirmação ele trazia uma Eisenbahn de trigo e, minutos depois, uma porção de batatas fritas com bacon e queijo cheddar.

Foi no Belgian Dash que refinei meu gosto etílico, conhecendo e aprendendo a saborear boas cervejas, tentando entender como cada uma era fabricada, suas histórias, suas nuanças de sabores, etc.

O Belgian foi também um local que flagrou diferentes momentos da minha vida e onde experimentei muitos sentimentos, desde dores-de-cotovelo a comemorações de conquistas pessoais passando por insights relacionados a tudo que fermentava em minha mente e no meu corpo.

            Goiânia agora perde muito do seu estilo. Vai ficar mais difícil superar este calor esturricante e estes dias trevosos pelos quais passamos. Enlutado, naturalmente associo esse fim à minha frase preferida de Jack Kerouac, expressa no seu belo e melancólico romance “Tristessa”: "[...] a beleza das coisas deve estar no fato de terminarem".

            Um brinde ao Belgian Dash e a todas as histórias que ele viu, ouviu e possibilitou!

 

Thiago Damasceno, 9 de novembro de 2020

CRÔNICA: Propagandas Eleitorais São Um Festival de Breguice

Minhas irmãs e meus irmãos de “terras brasilis”, é chegado o momento que não aguento mais: propagandas eleitorais!  Perdão pela rima boba e brega. E por falar em breguice... Tem coisa mais brega do que período eleitoral no Brasil?  

            De 2 em 2 anos somos assolados com o festival de breguices que são essas campanhas: sorrisos programados, jingles horríveis com dancinhas bobas (em certos casos), slogans previsíveis e discursos ensaiados baseados em conceitos genéricos como “mudança”, “renovação”, “esperança” e mais um monte de termos vazios de sentido do tanto que já foram mal utilizados. Quando vamos levar a política profundamente a sério?

            Claro que existem exceções, mas a regra do jogo é um conjunto de ausências: ausências de projetos políticos relevantes, planos de governo detalhados e bom gosto na estética e na linguagem. A cereja desse bolo estapafúrdio é a total falta de senso de ridículo em muitos clipes, vinhetas e propagandas como um todo.

Também faz parte da receita geral defender termos genéricos como “educação”, “segurança”, etc., mas ninguém tem um planejamento específico e peito para defender questões pontuais explicando tudo em detalhes. Por exemplo, que educação é defendida? Uma educação pública não baseada apenas em mercado que visa formar cidadão críticos e fiscalizadores e cobradores dos políticos - como funcionários públicos que são - ou uma educação de cunho apenas técnico e trabalhista que tem como objetivo formar cidadãos alienados abobados na política? Cidadãos esses devidamente temperados e cozinhados como prato principal do grande banquete do capital (outra rima boba e brega).

            Portanto, sejamos vigilantes quanto aos discursos genéricos e carentes de detalhes que não resistem aos primeiros minutos de uma sabatina.

Também tenho a impressão de que o número de candidatos vem aumentando a cada ano. Se essa questão quantitativa é mesmo um fato e se é boa ou ruim por si só, não sei, mas me pergunto até quando uma pessoa isolada cheia de boas intenções pode de fato mudar a política, ainda mais se colocando à frente de propagandas eleitorais tradicionais que mais obedecem à uma lógica de circo e de partida de futebol do que à representação coerente e condizente à seriedade de um cargo político.

Percebo que a estrutura política assimila a todos e a todas. Durante a campanha, os candidatos têm determinados princípios. Ao serem eleitos, esses princípios costumam mudar segundo as regras do grande jogo de poder e de dinheiro que é a política brasileira. Sem contar os muitos casos de ameaça físicas e assassinatos a quem não se vende a essas normas podres. Lembremos o caso de Marielle Franco...

Sendo assim, quem poderia escapar da assimilação desse leviatã que é a estrutura política brasileira?

Fato é que estou cansado de candidatos e partidos que se dizem novos e renovadores. De novidades e profetas da renovação o Inferno está cheio!

Quero uma política com projetos que incluam de fato o povo brasileiro em suas diversas manifestações e posições sociais, uma política que leve a sério os princípios constitucionais, o respeito pelos Direitos Humanos e pelos serviços e bens públicos. Quero um país que se leve a sério! E isso deve começar pela política!

Imagine o que Aristóteles diria se vivesse no Brasil contemporâneo. Ele diria que somos seres naturalmente políticos ou apolíticos?

            Em suma, quero que esta crônica um dia se torne obsoleta e, principalmente, brega!

           

 

Thiago Damasceno, 29 de setembro de 2020

segunda-feira, 14 de setembro de 2020

CRÔNICA: Há Vida em Marte, Major Tom?

Hoje me deparei com uma certa euforia nas redes sociais devido à notícia sobre a descoberta de gás fosfina na atmosfera de Vênus, que pode indicar presença de vida.

Nada mais brega que isso! Isso mesmo: B-R-E-G-A! E também enfadonho e estúpido. E até nocivo. Vou explicar porquê.

Quando eu era adolescente estudava Astronomia e Astrofísica “a fundo”, dentro do possível para um jovem no interior do Maranhão em meados dos anos 2000. Construí minha primeira luneta com canos PVC e algumas lentes. Abandonei esse instrumento quando meu pai me presenteou com um telescópio profissional. Na época, as maravilhas do espaço sideral me encantavam, bem como as possibilidades de vida extraterrestre.

Eu queria muito sair do amadorismo e me tornar um Astrônomo profissional, mas a vida tem muitas portas, caminhos, decisões, escolhas e renúncias e acabei me tornando historiador, formação que me dá muita satisfação e...

Senso crítico – e ousadia - para questionar o ânimo social com certas descobertas espaço-siderais. Vejam bem: não estou questionando as Ciências Espaciais nem suas validades e utilidades. Meu questionamento é em um sentido mais profundo, existencial e, por isso mesmo, cotidiano. Questiono nossa empolgação perante descobertas que, no presente contexto, acabam nos alienando da nossa atual condição: a de sermos homicidas e suicidas planetários.

Estamos sofrendo há meses com um vírus maldito e há anos com a ascensão do fascismo em várias regiões do globo e com muitas outras mazelas sociais. Em suma: nosso mundo está piorando porque nós estamos nos tornando habitantes piores. Nossas relações uns com os outros, com as outras espécies e com a Natureza como um todo estão nos direcionando para nossa própria extinção e para a morte de tudo que respira.

Ora bolas, se nossa situação vai de mal a pior o que nos importa saber de vida para além daqui?  

Anos e anos de descobertas científicas em muitas áreas para quê?! Para continuar tocando o mundo no ritmo alucinante da vida industrial que a tudo e a todos consome sem responsabilidade social e ecológica?! Sim!!

Então que se lasquem descobertas “impactantes” e “estupefatas” que acontecem para além da nossa atmosfera! Temos ciências já consolidadas que não servem para melhorar nossa qualidade de vida enquanto ser planetário! Que quero então eu saber sobre vida em outros planetas se nem do meu eu consigo cuidar? Ou melhor... se nem de nós mesmos conseguimos cuidar?

A Terra, enquanto estrutura física, vai continuar existindo conosco ou não, com as outras espécies ou não. No fim das contas, as lutas ambientais são um esforço em prol da nossa preservação hoje: nem das gerações futuras nem das pós-futuras, mas hoje! Não cuidamos nem disso direito, então para quê ânimo com E.T.s, alienígenas, odisseias espaciais, etc., enfim, com verdadeiros mitos da atualidade que mais nos alienam do que nos conscientizam da nossa atual condição global?

E vejam que paradoxo: os alienígenas nos alienam e, sendo alienados, nos tornamos alienígenas!

Vejo que nossa atual euforia com isso tudo é triste, brega, enfadonha, estúpida e nociva e, por fim, alienante: vibrar com vida em outros planetas e chorar o fim da vida no nosso...

Não caberemos todos em nenhum ônibus espacial da NASA! A tendência é que pereçamos por aqui mesmo...

Enfim, essas são as reflexões angustiadas de um cidadão brasileiro em plena pandemia e desgoverno Bolsonaro. Sendo assim, minha mensagem para meus irmãos e minhas irmãs do Planeta Azul é: Mais Terra, menos espaço sideral!  

E como diria o E.T. Bilú da Record: “Busquem conhecimento”.

Thiago Damasceno, 14 de setembro de 2020

 

Quem está ao sol e fecha os olhos,

Começa a não saber o que é o sol

E a pensar muitas coisas cheias de calor.

Mas abre os olhos e vê o sol,

E já não pode pensar em nada,

Porque a luz do sol vale mais que

[os pensamentos

De todos os filósofos e de todos os poetas [...]”.

(Fernando Pessoa: poemas de Alberto Caeiro)

terça-feira, 2 de junho de 2020

CRÔNICA: Protestos & Compaixão por Vidraças


É curioso e principalmente sádico o modo como os discursos dos poderosos tentam moldar a realidade. Toda vez que protestos populares explodem em qualquer canto do mundo, os meios jornalísticos tradicionais tentam subverter a ordem das coisas: colocam os protestos e seus “vandalismos” como absurdos e se esforçam para forjar esquecimentos aos motivos de tais atos, como corrupção política, ataques à dignidade da população menos privilegiada por meio da violação de direitos previstos em leis e até assassinatos cometidos por agentes do Estado.
George Floyd, negro estadunidense, foi morto devido à asfixia causada por um policial que o assassinou - literalmente – agachado e com as mãos nos bolsos! Todas as mortes são trágicas, mas o modo como Floyd foi assassinado escancara o sistema racista e violento em que vivemos! Floyd foi assassinado de forma intencional e leviana tal qual uma formiga que é pisoteada de propósito e sem o mínimo remorso!
E em todo o mundo há muitos Georges Floyds: de diferentes etnias, credos, gêneros e crenças. Já passou do tempo de o mundo explodir em uma revolta, em escala global e conjunta, contra toda essa opressão dos poderosos, os mesmos poderosos que tentam, com os seus discursos, criar uma realidade invertida onde a vítima é colocada como algoz e onde a reação do oprimido é colocada como ataque inicial.
E neste Brasil sem rumo e sem porteira é comum encontrarmos pessoas que compram esses discursos dos poderosos e injetam em suas veias ideias que deslegitimam quaisquer protestos e reações populares a partir de uma empatia invertida: sentem piedade das vidraças e dos bens materiais “vandalizados”, não dos sofrimentos populares ou das mortes que motivaram tais atos.
Por isso, deixo aqui uma mensagem aos desavisados e/ou ingênuos que têm compaixão por vidraças: nos poupem de suas pseudoelegâncias e pseudovirtudes! Nos poupem de suas piedades aos poderosos que nos massacram! Nos poupem de seus sentimentalismos baratos aos bens materiais daqueles que nos oprimem! Se não for para ajudar com pelo menos um fósforo aceso para pôr fogo no mundo, nos poupem de seus discursos vazios!
Com tudo que estamos sofrendo, qualquer barril de pólvora é pouco!
Não há vandalismo maior do que matar um negro de forma sádica e descarada! Não há Casa Branca em chamas que se equipare a isso!
Não há vidraça de banco estilhaçada que se equipare ao que o trabalhador médio brasileiro sofre diariamente!
Não há Palácio da Alvorada em chamas que se equipare ao que passamos hoje com esta pandemia e um governo-quadrilha perverso!
Se for preciso que o mundo arda em chamas para que o fogo, com sua poesia demoníaca, crie um mundo melhor, então que o mundo queime!
Toquemos fogo no mundo!

Thiago Damasceno, 02 de junho de 2020