ThiagoDamasceno: Poema da Urgência

quinta-feira, 18 de agosto de 2022

Poema da Urgência

 

Poema da Urgência
(Thiago Damasceno) 


Urge acordar cedo
para darmos conta até o fim do dia
das atividades ansiosas e nada amistosas
que exigem mais de 24 horas
 
Urge pagar boletos
e parcelar as compras no cartão de crédito
enquanto os cálculos daquela tão sonhada viagem
vão se derretendo na xícara de café do trabalho
 
Urge falar menos e fazer mais
Urge descansar de menos e se esforçar demais
Urge filosofar em segredo no chuveiro
porque é o momento que nos restou para isso
e ficamos um pouco mais debaixo da água quente
para que a realidade nos pareça suportável
 
Urge frear a inflação
Urge trocar o carro por uma bicicleta
Urge pedir desconto e negociar
Urge se alimentar de xepas porque,
meus amigos e minhas amigas,
do jeito que as coisas estão
até o barato sai caro
 
Urge desorientar o mapa da fome
Urge aplacar a sede dos sem nome
e também urge parar de beber
porque ser boêmio agora é para poucos
 
Urge tocar fogo nos racistas
Urge acender um último cigarro
e beber uma dose de uísque escocês
em um brinde contra o fascismo
 
Urge obliterar o presidente
e castrar todos os seus ministérios  
antes que não sobre nenhum país
para nos dar um senso de urgência
 
Urge lembrarmos de Deus
e não esquecermos do Diabo
Urge salvar Cristo
dos falsos bem aventurados
que mentem em seu nome
 
Urge fazer ioga
Urge meditar
Urge rogar a todos os santos, Budas e orixás
até que o Universo inteiro faça sentido
dentro de uma prece
 
Urge correr contra o Tempo
para envelhecer jovialmente
e tentar enganar o espelho
enquanto aumentam-se o risco
de ataque cardíaco e aneurisma cerebral
 
Horário do óbito:
11h13min de uma segunda-feira qualquer
 
Urge comer menos
Urge tentar emagrecer
e comer demais de tanta ansiedade
que a ideia de emagrecer nos causa
 
Urge tomar comprimidos para dormir
e sonhar tão rápido a tal ponto
que não lembremos nada no dia seguinte
porque dizem que a vida foi feita
para nela se trabalhar
e não para se plantar sonhos
 
Urge aprender inglês, tupi, latim,
árabe, mandarim e as línguas Bantu
para tentar traduzir  
todos os sentimentos do mundo
 
Urge abrir trilhas de empatia
por entre os meandros da globalização
Urge descumprir todos os acordos e tratados
e todas as convenções que deram errado
Urge mandar Versalhes e Genebra ao raio que os parta!
 
Urge destituir a culpa de qualquer responsabilidade
Urge enganar as virtudes e dar o troco nos pecados
Urge resetar todas as civilizações
e recomeçar do zero
porque chegamos muito aquém do esperado
 
E como chegamos aqui mesmo?
 
Urge escrever prosas e versos
como um exorcista que negocia sua alma
por um futuro onde não exista urgências
 
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Versos inspirados nas nossas atuais situações política, econômica, religiosa e tudo mais no país e no mundo. Comecei a pensar neles a partir do “Poema da Necessidade” (1940) do Drummond. Acho que também há algumas pitadas de “Tabacaria” (1933) do Fernando Pessoa. As referências históricas mais diretas são ao Tratado de Versalhes (1919) e às Convenções de Genebra (1863, 1906, 1929, 1949). No mais, é um grito de indignação! Espero que gostem!
 

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