A
Explosão de Julho
Por Thiago Damasceno
I
Sol: o astro principal do nosso sistema estelar. Seu
campo gravitacional mantém planetas, satélites, asteroides, meteoroides,
cometas e planetoides girando ao seu redor, sem contar todos os instrumentos espaciais
construídos pelo Homem, incluindo toneladas de lixo espacial. Em Carolina o Sol
é impiedoso, gritante, cortante, homicida. Transmite uma espécie de calor que no
contexto do norte do Tocantins e do sul do Maranhão pode ser compreendido como
algo maior e mais existencial: a “quentura”, termo popular que define esse
estado de “agonia existencial provocada pelo calor”. Há um tom humorístico
nisso tudo, mas a questão é bem séria.
A quentura consiste na “massa de calor” que assola o
cidadão por todos os lados. Sinto arrepios e a pele começa a arder só em pensar
nisso. É angustiante andar debaixo do Sol abrasador da tarde. Banhar adianta um
pouco, mas vive-se molhado de suor. Com essas características julho explodiu
com toda sua atmosfera de euforia sem roteiros. Quando digo “sem roteiros”
quero comparar as férias a uma peça ou a um filme sem muito planejamento. Boa
parte dos bons momentos das férias aconteceram sem muitos planos, com certa
espontaneidade, tendo como cenário o ceú azul tranquilo e cruel, o calor
escaldante, a noite estrelada, a Lua hipnotizante, uma galera animada e a
agitação correndo pelas ruas.
Sob uma visão geral, houve a
rotina, a uniformidade julhística que era: acordar tarde da manhã, inventar
algo à tarde (cinema, música, vídeogame) e farrear rasgando a madrugada pra novamente
acordar tarde no dia seguinte. Essa foi a base do cotidiano de férias, com
algumas variantes. Não vou narrar nenhum caso específico porque envolve pessoas
não tão íntimas ao meu grupo social e isso suscitaria mais polêmicas do que as
levantadas aqui.
Eu saía à tarde lutando contra o sono e com a pele
queimando sob o Sol. Consegui assistir, com amigos, toda a saga Star Wars.
Discutimos e apontamos as etapas da Jornada do Herói, presente também em muitos
outros filmes. Também vimos o famoso seriado Dr. House. Nas primeiras noites saí muito com amigos pra beber e
andar pela cidade até a madrugada. Um dos points
da galera da insônia é a beira rio, reformada pela empresa CESTE após a
construção da Usina Hidrelétrica de Estreito, cidade próxima de Carolina. A
beira rio ficou bonita e organizada, mas é sempre bom lembrar as indenizações
ainda não pagas pelo CESTE aos atingidos pela obra e os danos ambientais
causados pela construção da usina. Isso não é novidade pra ninguém, assim como
a pilantragem política que continua em Carolina, inserida nesse contexto de
“construção de obras compensatórias” ao rebanho bem desinformado chamado “povo”.
Desde que me entendo por gente e muito antes disso, o
cenário político carolinense é dominado por dois grupos: os partidos ou
coligações popularmente chamados de “Pé Rachado” e “Pé Liso”, que literalmente
alternam-se no poder. Agora vêm aparecendo outros “partidos” na cidade com o
velho discurso do “Agora vai ser diferente, agora vamos mudar!”, mas no fundo,
são apenas as uniões das mesmas personalidades políticas. Vi a lista de alguns
candidatos ao Legislativo e compreendi isso. No fundo, é muita ingenuidade
acreditar que a “democracia” permite um bom governo porque envolve várias
pessoas. Na verdade, envolve sempre grupos, um número pequeno de pessoas, que
não representa a maioria, o povo, mas seus próprios interesses e o interesse daqueles
que patrocinam suas campanhas. Além do mais, essa “democracia” não é exatamente
uma democracia, um regime da liberdade, pois você é obrigado a votar e quando
vamos escolher candidatos, escolhemos de maneira limitada porque temos que
votar nos cidadãos que os partidos escolheram. Ou seja, escolhemos quem já foi
escolhido. Ora, essa é a melhor maneira do povo ter representatividade
política? E eles ainda mentem sobre nossa liberdade voto. Quem são eles, quem eles pensam que são?
Uso essa introdutória abordagem política pra falar sobre
o que fizemos na terça-feira, dia 24 de julho. Me uni com amigos, os velhos e
onipresentes companheiros da banda Blackout (Luciano, Orleans, Bruno e Raimundo),
com Heitor (Viajante Clandestino) e Lucas, da lendária banda Indígenas. Todos
carolinenses e cientes do contexto político e artístico da cidade que muitas
vezes não tem muito a oferecer à população. Instalamos um som amador (apenas
duas caixas amplificadoras) na praça conhecida como praça dos Hots e tocamos de
23 hs até 3 e 30 da manhã com contrabaixo, violão, guitarra, gaitas, meia-lua e
cajon. A praça possui cinco bares/restaurantes
e fizemos questão de virar as caixas pro lado inverso ao dos estabelecimentos,
pois eles não nos dariam nada em troca mesmo. Quem quisesse nos ouvir, que
fosse pro outro lado.
Também fizemos questão de falar sobre a situação política
da cidade e a cantar isso nos medleys improvisados
das músicas. O líder disso tudo foi Lucas, que frisou também a importância do
voto de cada eleitor. Discordo dessa importância do voto, mas a crítica é
válida. Falarei mais sobre essa noite nos textos que tratam exclusivamente
sobre o cotidiano da Blackout. Mas registro que a noite foi rockeira, com som
sujo, coragem e atitude.
Essa noite foi o estopim de noites mais devassas.
A partir de quinta-feira entramos numa torrente de agitação até então inédita
pra mim. Na quinta e na sexta fomos pra festas e tocamos numa delas, tudo
regado a álcool e às contemplações da aurora. Um pouco diferente (ou não) foi
no sábado, quando fomos tocar no festejo religioso de Filadélfia-TO, cidade
vizinha à Carolina, separada desta pelo rio Tocantins. Chegamos lá por volta de
oito e meia da noite, tocamos em cima de um caminhão estacionado ao lado do
templo católico principal da cidade, com a roupa do corpo mesmo (blusa, bermuda
e havaianas) porque não tivemos tempo de voltar pra Carolina pra mudar de
roupa. Só voltamos à nossa maranhense cidade por volta de duas da manhã. Fui
dormir, profundamente esgotado, mas os demais companheiros ainda foram a uma
festa na mitológica boate Itapoã. Mais sobre essas aventuras, nos textos sobre a
Blackout.
Esse
sábado foi o dia que mais fiquei fora dos eixos. Passei o dia todo praticamente
alucinado, no mundo onírico, tentando acordar. Pela manhã estava com ressaca,
dormi a tarde toda e quando me acordaram já foi logo pra entrar num carro rumo
à Filadélfia. Quando voltei plenamente aos sentidos estava sob o cansaço, na
madrugada, e resolvi dormir. No dia seguinte, domingo, impressionado com o fim
da agitação dos dias, tive altos pensamentos sobre a vida, concluindo o que eu
havia pensado dias antes...
II
Continuando sobre os altos pensamentos sobre a vida...
Mas antes, alguns poréns...
Julho é o mês com o maior número de festas na cidade. O
bagaço começa na quinta e para no sábado. As festas são embaladas por funk, música eletrônica, sertanejo
universitário e rock. Este último está em menor quantidade, já que só um
pequeno grupo juvenil da cidade (Blackout, Surt 100, reminiscências do
Indígenas e aqui a e ali, mas em barzinhos, Viajante Clandestino) mantêm o
gênero ativo. Música eletrônica e sertanejo universitário são os mais presentes
nas festas. A música eletrônica, por favorecer uma dança contínua e assim, por
cumprir a função de preliminar sexual, sendo o sexo um dos objetivos dos
festeiros, começa a ser tocada após qualquer ritmo, marcando o início da metade
da festa. E o batidão fica até o fim, chegando a enjoar os ouvidos a perpétua
queda e subida de melodia. Não estou falando mal da música eletrônica, só estou
dizendo que ela abusa após ser ouvida por três horas seguintes. Seu movimento melódico
é constante e previsível.
O sertanejo universitário da cidade se apresenta com duplas
das redondezas e com o nativo Maurício Jr., renegado por outros nativos por
simplesmente ser da terra, porque o jovem manda bem e tem uma boa aparelhagem.
Várias vezes já ouvi e vi carolinenses comentarem: “Pagar pra ver o Maurício
Jr.?”. Entra aqui a estúpida filosofia do “Santo de casa não faz milagre”.
Quanta besteira não valorizar um artista da terra só porque você vê o sujeito
andando na rua. Só se valorizaria o cara se ele chegasse num disco voador? Isso
já aconteceu comigo e outros amigos também. O pior é que quem não valoriza o
artista da terra tem a cara de pau de perguntar, com falso entusiasmo, quando
vai ser o próximo show e ainda diz que vai.
Contudo, há sempre uma galera fiel procurando música,
romance e diversão. No fundo todos procuramos isso e as festas e as noites nos
ajudam um pouco... As mesmas festas e
noites que me puseram em um dilema filosófico...
Em certa madrugada, fiquei tocando com vários amigos nas
praças da cidade, enquanto uma festa bombava no Skina 10, casa de eventos.
Tínhamos conosco três cantores, dois violões, um cajon, uma meia-lua, gaitas, etc. Horas depois mais amigos chegaram
com vodka e refrigerante. Bebemos e continuamos a tocar e ficamos naquela onda.
Saí com um velho amigo por volta das quatro da manhã pra ver o movimento na
festa. Esse amigo estava distante há tempos e claro que ambos não éramos mais
os mesmos, mas parece que nosso relacionamento caiu em termos de
companheirismos. Moramos longe e a distância simplesmente distancia as pessoas.
Voltando
ao rolé na festa...
Muitos estavam indo embora. Fiquei
contemplando os que assistiam a noite, os que estavam bêbados, tristes,
brigados com os parceiros sexuais, sorridentes, satisfeitos, etc. Eram muitos
personagens numa peça noturna e melancólica. A madrugada tem um ar de
melancolia. Entendi então que não há sentido nessas coisas, ao menos um sentido
como se pensa usualmente.
Demorei
pra aceitar, há certo tempo, mas aceitei que a existência humana não tem um
sentido absoluto e independente do Homem, como Deus, deuses ou um futuro
promissor. Lendo sobre budismo, Schopenhauer e Nietzsche compreendi que não há
verdades absolutas. Tudo é criação humana. Assim, a existência tem o sentido
que cada um dá a ela. Não há nada independente e além. Não há um Deus olhando
seus passos nem um bom futuro esperando todos de braços abertos. Crer nisso é
platonismo, é negar esta vida. Entendendo “esta vida” como este mundo, este
tempo, basicamente.
A filosofia nietzschiana condena a negação da vida e defende sua
aceitação, com todos os seus bons e maus momentos. Eu pensei que conseguia
aceitar a vida até que percebi, depois de muito tempo, que a vida não é espetacular.
Isso porque quando se fala em aceitar a vida é comum pensá-la como algo
grandioso, mas na verdade é vida não é uma arte. Estamos condenados a todo tipo
de sofrimento, principalmente o de vivermos insatisfeitos por causa de desejos constantes
e expectativas irrealistas. A vida é muito simples, banal e frágil. Tudo é
transitório. As coisas boas e ruins passam. Muitas vezes essa vida é a ressaca
após uma noite de porre, encenada no silêncio, na solidão e no escuro de um
quarto, quando não há mais ninguém pra lhe dar ouvidos, pra escutar um
desabafo, e você é atormentado pelos seus fantasmas e demônios. A seguir, uma imagem do Ouroboros, que representa a eternidade.
Como
a vida não é espetacular, o desafio é esse: aceitar algo tão simples e frequentemente
enfadonho, tedioso e passageiro. Entra aqui o conceito do eterno retorno nietzschiano, que seria, basicamente, a ideia de que
vivências opostas e complementares se alternam durante a existência. Ou seja,
sempre experimentamos e experimentaremos alegria e tristeza, saúde e dor e
outras vivências opostas e complementares em graus diferentes. Tudo isso já aconteceu antes e vai acontecer
de novo. A pergunta que Nietzsche faz é, se a vida é esse ciclo de
vivências, ela vale mesmo a pena ser revivida? Você iria querer tudo outra vez? Qual sua
atitude frente a esse eterno retorno de sentimentos e vivências?
“E
se um dia ou uma noite um demônio se esgueirasse em tua mais solitária solidão
e te dissesse: “Esta vida, assim como tu vives agora e como a viveste, terás de
vivê-la ainda uma vez e ainda inúmeras vezes: e não haverá nela nada de novo,
cada dor e cada prazer e cada pensamento e suspiro e tudo o que há de
indivisivelmente pequeno e de grande em tua vida há de te retornar, e tudo na
mesma ordem e sequência – e do mesmo modo esta aranha e este luar entre as
árvores, e do mesmo modo este instante e eu próprio. A eterna ampulheta da existência
será sempre virada outra vez – e tu com ela, poeirinha da poeira! “Não te
lançarias ao chão e rangerias os dentes e amaldiçoarias o demônio que te
falasses assim? Ou viveste alguma vez um instante descomunal, em que lhe
responderias: “Tu és um deus e nunca ouvi nada mais divino!”. Se esse
pensamento adquirisse poder sobre ti, assim como tu és, ele te transformaria e
talvez te triturasse: a pergunta diante de tudo e de cada coisa: “Quero isto
ainda uma vez e inúmeras vezes?” pesaria como o mais pesado dos pesos sobre o
teu agir! Ou, então, como terias de ficar de bem contigo e mesmo com a vida,
para não desejar nada mais do que essa última, eterna confirmação e chancela?”
(A Gaia Ciência, aforismo 56)
III
Após
muito refletir vi que a vida pode ser aceita e apreciada, desde que você não se
carregue com expectativas irrealistas, aquelas vontade que você não tem
condições de realizar. O budismo já informa que uma das causas do sofrimento é
alimentar isso, as expectativas irrealistas, pois elas não podem ser satisfeitas
e geram mais e mais insatisfações, e o Homem tem problemas com isso porque é um
ser de vontade, como defendem os filósofos alemães citados aqui.
Com
os pensamentos mais bem acabados, passei a apreciar e a adorar as noites que
vivia com meus amigos, nossas conversas, piadas e música do jeito simples
mesmo, pois somos meros mortais. No entanto, a empatia humana me deixava um
pouco cabisbaixo ao ver muitas almas sofrendo, usando máscaras pra serem outras
pessoas e conseguir assim, quem sabe, companhia pras suas miseráveis solidões.
Sem contar os perdidos que mal sabem o que querem, física e emocionalmente, e
por agir perdidos, terminam fazendo mal a entes queridos. Nossa raça é assim
mesmo, o jeito é tentar consertar o que se pode e tentar esquecer ou relaxar com
certos acontecimentos porque o mundo não gira ao redor de ninguém. Muito pelo
contrário, gira em desacordo com a nossa vontade e só você mesmo pode se salvar
do que você acha que deve se salvar. Não adianta interferir muito nos
acontecimentos que rolam fora de sua influência ou tentar vencer guerras que
não podem ser vencidas.
Nietzsche
também diz que “os homens não
têm de fugir à vida como os pessimistas, mas como alegres convivas de um
banquete que desejam suas taças novamente cheias, dirão à vida: uma vez mais”. Assim, mal vejo a hora das férias acontecerem mais uma vez com emoções
semelhantes as que vivi no mês passado. Mas antes que o novo apareça novamente,
preciso contemplar o fim mais uma vez.
Anuncio o último texto da trilogia sobre as férias: O Crepúsculo de Julho.
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