“O
Rouxinol & A Rosa”, de Oscar Wilde
O ROUXINOL E A ROSA
de Oscar Wilde
Por Thiago Damasceno
Apontamentos Biográficos
O
governo da rainha Vitória e do seu marido, Albert, na Grã-Bretanha, durou de
1837 a 1901 e algumas de suas marcas foram a defesa de valores morais
rigorosos, intolerância à criminalidade e forte repressão sexual. Umas das
orientações dessa época, chamada “Era Vitoriana”, era de que, nos ambientes
sociais mais sofisticados, devia-se cobrir as “pernas”, desde as pernas das
mulheres até as “pernas” de pianos e móveis. Recomendava-se também substituir
expressões como “peito de frango” por “seio de frango”. As potências europeias
viviam a época denominada pela História como neocolonialismo, caracterizada pela intervenção militar e pelo
controle, por parte das potências, da política e economia do continente
africano e de alguns países da Ásia. O Império Britânico era o maior daquele
século e suas produções e valores foram disseminados pelo mundo. Nesse contexto
viveu o polêmico escritor irlandês Oscar Wilde, nascido em 16 de outubro de 1854
em Dublin.
Wilde foi um escritor prolífico. Escreveu
um romance, contos, peças teatrais, poemas e ensaios. Também fundou um
movimento estético chamado dandismo ou esteticismo, no qual pregava o belo como cura aos horrores da sociedade
industrial. Sendo ele mesmo um dândi, Wilde frequentava os salões e
restaurantes da moda vestindo roupas de seda e de pele refinadas, segurando
flores. Ele também se preocupava em fugir do banal, do normal. Tinha bom gosto
estético e um profundo conhecimento artístico e cultural. Quando morou em
Londres ficou conhecido por atitudes sociais extravagantes e polêmicas, além da
crítica à hipocrisia da burguesia e da nobreza e pelo seu sarcasmo e ironia na
fala e na escrita, além do seu “combate” à mediocridade na Arte. Mas foi em
1891 que seu modo de vida lhe custou a perda da fama e do seu patrimônio
material.
Naquele
ano, o seu único romance, O Retrato de
Dorian Gray, fora publicado. Outras obras já tinham sido difundidas e Wilde
só crescia em termos financeiros, literários, de fama e de vida social. Em 1891
ele também conheceu o jovem nobre Alfred Douglas, apelidado de Bosie, filho do
marquês de Queensberry. A beleza física de Bosie (olhos claros, cabelos loiros,
corpo esguio) encantou Wilde e eles começaram uma relação homoafetiva que podia
ser vista nos pontos de encontro da elegante Londres, indo contra a moral
vitoriana, que considerava a homoafetividade masculina ilegal e negava a
existência da homoafetividade feminina. Queensberry, pai de Douglas, enviou um
bilhete a Wilde ofendendo-o. Wilde o denunciou por difamação. No processo,
Queensberry mostrou o motivo do seu ataque, as práticas homoafetivas de Wilde, e
após três julgamentos, o escritor foi condenado a dois anos de prisão com
trabalhos forçados.
Os livros de Wilde saíram das
livrarias, suas comédias saíram dos cartazes, seus dois filhos com Constance
Lloyd, Cyril e Vyvyan, foram tirados de sua tutela e mudaram seus sobrenomes
para Holland, e seus bens foram leiloados para pagar as despesas do processo.
Mesmo assim, ao sair da prisão em 1897, Wilde continuou a escrever, porém
usando o pseudônimo Sebastian Melmoth devido à difamação de seu nome. Sua
família já havia se ausentado de sua vida. Com a ajuda de seu amigo Robert
Ross, o escritor passou a viver em Paris de forma mais humilde e pacata, nada
comparada ao seu exuberante modo de vida anterior. Wilde faleceu em 30 de
novembro de 1900 sob um violento ataque de meningite agravado pelo álcool e
pela sífilis. Foi o fim corporal de um grande nome da literatura inglesa.
Estruturas e Características de “O
Rouxinol & A Rosa”
O narrador do conto é onisciente.
Está em todos os lugares da estória e conhece todo o enredo e o mundo interior
dos personagens. Ele se apresenta com uma voz narrativa em terceira pessoa e
permite que os personagens falem na maior parte da obra, podendo ser entendido
como um narrador “neutro”. Lembrando que essa neutralidade é aparente, pois no
nível da linguagem se percebe a parcialidade do narrador. Segundo a divisão de
pontos de vista narrativos do crítico norteamericano Norman Friedman, o narrador
de O Rouxinol & A Rosa se encaixa
como “autor-editor onisciente”.
Essa obra está inserida, pela predominância
da forma de representação, no gênero narrativo, mas contém muitos traços
dramáticos, pois quem fala na maior parte do texto são os personagens, como
numa peça teatral. Outro aspecto marcante de O Rouxinol & A Rosa é que a obra é um conto com características
de fábula. Alguns personagens são animais personificados, ou seja, agem,
pensam, sentem e falam como seres humanos, mas os personagens humanos do conto
não podem entendê-los. Vejamos algumas definições de “fábula”:
“A
fábula tem dupla finalidade: entreter e aconselhar”. (Fedro, século I d.C.)
“A
fábula é uma pequena narrativa que, sob o véu da ficção, guarda uma
moralidade”. (La Fontaine ,
século XVII)
Assim, vemos que O Rouxinol & A Rosa procura mostrar ensinamentos,
principalmente sobre as relações amorosas, relativamente censuradas e difíceis
de resistirem a aspectos financeiros e de não caírem na hipocrisia social. Pelo
uso de uma linguagem metafórica simples e pelo tom de fábula, o escritor
britânico se dirige principalmente ao público infantojuvenil, mas claro que
esse não é o único público leitor.
Resumo da Obra
O conto começa com um rouxinol em um
jardim que se compadece do sofrimento amoroso de um jovem estudante. O jovem
está chorando porque sua pretendente lhe disse que dançaria com ele no baile do
Príncipe caso o jovem lhe desse uma rosa vermelha, mas não há rosas vermelhas
no jardim.
Um lagarto, uma borboleta e uma
margarida perguntam o motivo das lágrimas do jovem e o rouxinol lhes diz:
“Chora por uma rosa vermelha”. O lagarto, por não compreender os sentimentos do
jovem, sorriu dele, mas o rouxinol “ficou silencioso na azinheira a refletir
nos mistérios do amor”. De repente ele abre suas asas e sai à procura de uma
rosa vermelha junto às roseiras, prometendo cantar sua mais bela canção à
planta que lhe der a tal rosa.
Vai
a uma roseira, mas ela tem rosas brancas. Vai à outra roseira, mas ela tem
rosas amarelas. A última roseira visitada, que crescia debaixo da janela do
estudante, tem rosas encarnadas, mas diz ter um meio terrível de dar ao
rouxinol uma rosa vermelha. Ela informa ao rouxinol que criará uma rosa
vermelha caso ele cante para ela com o peito apoiado em um dos seus espinhos.
Assim, o espinho lhe atravessará o coração e seu sangue irá colorir as veias da
roseira, fazendo com que ela produza uma linda rosa vermelha.
Feita a proposta, o rouxinol diz: “A
morte é um preço muito alto por uma rosa vermelha e todos temos um grande amor
à vida (...). Contudo, o amor é melhor que a vida, e que é o coração de uma ave
comparado com o coração de um homem?”. Após pensar, o rouxinol decide se
sacrificar em prol da felicidade do jovem e passa a noite cantando com o peito
contra o espinho, até que de manhã bem cedo, morre e faz com que da roseira
brote uma rosa vermelha. O jovem acorda, vê a rosa e anima-se. Imediatamente
vai ver sua amada para lhe dar o presente.
Contudo, ao ver a rosa, a jovem diz
que ela não combina com a cor do seu vestido e que o sobrinho do camarista já
havia lhe dado algumas jóias verdadeiras e “toda gente sabe que jóias custam
mais que flores”. Após uma pequena discussão dos dois, o jovem estudante diz:
“Que coisa estúpida é o amor. Não tem a metade da utilidade da Lógica, pois com
ele nada se prova, e fala-nos sempre de coisas que nunca vão acontecer
fazendo-nos acreditar em coisas destituídas de realidade”. Em seguida, volta
para casa para continuar seus estudos de Física, Metafísica e Lógica.
Enquanto isso, o rouxinol “jazia
morto na relva alta, com o espinho cravado no coração”.
Comentários
Nesse
conto, Wilde aborda a questão do relacionamento amoroso entre os seres vivos e
numa linguagem clara, parece se dirigir mais às crianças. É interessante notar,
primeiramente, que é transmitida a ideia de que o amor envolve sacrifício e não
é algo que envolve apenas um ser. O rouxinol sacrifica a vida a favor do amor
do jovem estudante com a jovem. De certo modo o jovem também se sacrifica um
pouco. Seu sofrimento é óbvio, mas ambos os sacrifícios, principalmente o do
rouxinol, levam a nada porque a jovem rejeita a rosa vermelha do jovem.
Antes que o rouxinol vá cantar para
a roseira a fim de conseguir a rosa vermelha, o jovem ouve o rouxinol cantar e
conclui que ele não tem sentimento. Nesse momento, por meio da voz do
personagem, o narrador e/ou o autor (são seres diferentes) joga uma ideia (ou
opinião) sobre a Arte para discuti-la, afirmando que o rouxinol, como a maioria
dos artistas, “é todo estilo, sem nenhuma sinceridade”. O rouxinol e os
artistas não se sacrificariam por ninguém, pois a Arte é egoísta, mas essa Arte
é bela. É possível compreender mais esse ponto de vista numa passagem de O Retrato de Dorian Gray, onde o pintor
Basílio Hallward, que pinta o belo jovem Dorian Gray, diz ao seu amigo Lord
Henry que não quer expor sua obra porque ela é muito pessoal, tem muito dele,
assim diz:
“Um artista deve criar
coisas belas, mas não deve botar nelas nada da sua vida. Vivemos numa época em
que as pessoas não vêem na arte senão uma forma de autobiografia. Perdemos o
sentido abstrato da beleza. Algum dia, ensinarei ao mundo o que seja; e, por
esta razão, o mundo não verá nunca o meu retrato de Dorian Gray”.
Wilde não é necessariamente o narrador
de toda sua prosa ficcional, mas como autor, transmite suas ideias por meio dos
seus narradores e personagens, suas entidades fictícias. Nesse ponto destaco a
figura do autor implícito, situado
entre o autor (pessoa real, que
escreve a estória) e o narrador
(entidade inventada que conta a estória). O autor
implícito transmite, na fala do narrador, ideias do autor, mas de forma
inconsciente. Assim, conhecendo as demais obras de Wilde, onde ele obviamente expõe
suas ideias, identifica-se o que é próprio do narrador e do autor e quando suas
falas se misturam, mostrando o “autor que fala sem querer”, o autor implícito.
Voltando à questão do Belo na Arte...
Wilde defende que o artista deve criar
coisas belas e que a Beleza é absoluta e atemporal, marcando presença em todas
as culturas e períodos da história, sendo uma espécie de patrimônio da
humanidade com qualidades inquestionáveis. No conto aqui discutido, o
personagem rouxinol, que vive cantando e criando coisas belas e é ao menos na
aparência, egoísta, simboliza os artistas, enquanto o jovem estudante simboliza
os estudiosos, os eruditos, por estudar Filosofia e Metafísica.
Essa erudição do jovem o afastaria
da natureza, no sentido de a vida de estudos ser uma vida dedicada aos livros e
portanto, uma vida superficial por não ser natural? Creio que a resposta é
afirmativa, pois o estudante ouve o canto do rouxinol, mas não o entende. Claro
que no universo ficcional do conto, o entendimento entre estudante e rouxinol
seria possível, mas a estória não permite isso.
O
Rouxinol & A Rosa também nos alerta para o fato do amor criar
expectativas não realistas. O jovem idealiza sua amada e o momento em que dará
a rosa vermelha para ela, imaginando dançar com ela até o amanhecer, mesmo
sabendo que a jovem, no baile do Príncipe, estará acompanhada por esse
Príncipe. Só a promessa dela em dançar com o jovem faz com que este viaje na
sua imaginação. Nesse ponto e no sacrifício em vão do rouxinol vemos que uma
relação amorosa não é algo que depende de uma única pessoa, mas de quem estiver
envolvido, sendo assim, muito fácil criar sofrimento a partir disso, porque a relação
amorosa envolve idealização e criação de expectativas, mas isso é individual. O
outro envolvido ou a outra envolvida, por não ter conhecimento das expectativas
do “parceiro”, age de uma forma que o “parceiro” não espera, causando dor e
sofrimento ao outro. É o que acontece com o jovem estudante. Afinal de contas,
as relações pessoais e sociais não giram em torno de uma única pessoa.
Outro
conselho sugerido pelo conto é a diferenciação entre amor e paixão. Quando a
jovem, mais atenta às jóias dadas pelo filho do camarista, nega a rosa vermelha
do jovem, o jovem conclui que o amor é algo estúpido e que faz um individuo
acreditar em coisas irreais, como explicado no parágrafo anterior. Ele,
claramente, se revolta contra o amor e converte seu interesse amoroso aos
estudos, que são a Filosofia e a Metafísica. Se o sentimento dele pela jovem
mudou tão rápido assim, seria amor? Ou seria mais uma paixão, algo que vem de
súbito e vai embora da mesma forma? O amor seria algo mais profundo, mais ligado
à compreensão e à paciência?
Na preferência da jovem pelas jóias
em vez da simples, bela e difícil rosa,
fruto de um sacrifício enorme do rouxinol, vemos que qualquer relação conjugal,
como namoro ou casamento, pode estar submetida à renda e/ou à posição social do
casal ou de um membro do casal. Fica claro que a jovem preferiu o presente do
sobrinho do camarista pelo valor do presente e pelo nível social do sobrinho do
camarista, mais importante que o nível social do jovem, que era o estudante.
Essa ideia simples é vista em outras obras de Wilde e no nosso cotidiano. Entra
aqui mais uma vez a categoria do autor implícito porque há uma crítica à
sociedade burguesa e suas relações, aspecto das obras e da vida de Oscar Wilde.
Apontamentos Bibliográficos
Poesia: Poems,
1881.
Contos: Lord Savile´s Crime and Other Stories,
1891; The Happy Prince and Other Tales,
1888; A House of Pomegranates, 1891.
Romance: The Picture of Dorian Gray, 1891.
Ensaios: Intentions, 1891; The Soul of Man Under Socialism, 1891.
Teatro: The Duchess of Padua , 1884; Salomé, 1891; Lady
Windermere´s Fan, 1893; A Woman of No
Importance, 1894; The Importance of
Being Earnest, 1895.
Obras
escritas na prisão: De Profundis (Carta
dirigida a Alfred Douglas e publicada em 1959); The Ballad of Reading Gaol (publicada em1898).
Referências
ESOPO. Fábulas.
Porto Alegre: L&PM Pocket, 1997.
GOTLIB, Nádia Battella. Teoria do Conto. Rio de Janeiro: Ática, 11ª edição, 2010.
JUNIOR, Benjamin Abdala. Introdução à análise da narrativa. São Paulo: Scipione, 1995.
WILDE, Oscar.
Aforismos. Rio de Janeiro: Newton
Compton Brasil LTDA, 1995
WILDE, Oscar.
O Fantasma de Canterville & Outros
Contos. Grupo Ediouro, Coleção Universidade de Bolso.
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