Solidão
Por Thiago Damasceno
“A solidão é fera, a solidão devora, é amiga das horas, prima-irmã do
tempo e faz nossos relógios caminharem lentos, criando um descompasso no meu
coração”.
(Alceu Valença, Solidão)
Entro no quarto com o desejo de fugir da solidão da
noite. Ligo pra amigos, mas nenhum deles atende. Não há ninguém em casa, não há
ninguém pra conversar, não há ninguém pra trocar ideias, não há nenhuma
novidade no Facebook. Desço à calçada
do prédio. Não há ninguém no elevador, não há ninguém na portaria. Vou ao meio
da rua e grito com as mãos abertas ao lado da boca: “Tem alguém aqui?! Alguém?!”.
Ninguém. A noite tenta engolir as luzes acesas dos prédios e por isso eu sei
que há gente por toda parte, mas ninguém quer aparecer, então é como se eles
não existissem. Eles fingem que não me ouviram. Volto ao apartamento. Talvez a
escrita seja minha fuga da solidão.
Sento ao computador e olho a cidade pela janela que
está ao meu lado. Tudo começa a dormir. Ouço o barulho de algo se aproximando
pelo lado de fora. É um som agudo que vai ficando cada vez mais intenso. Sinto
cheiro de coisa podre. Minutos depois aparece um corpo levitando do lado de
fora, subindo lentamente e passando pela janela, como se estivesse sendo manipulado
por mãos invisíveis. O cadáver pousa no chão do quarto. Olho pra ele com curiosidade moderada. Há um buraco
de bala na sua testa e outro no coração. O sangue ainda escorre dos ferimentos.
O cheiro é insuportável. O sangue que desliza pelo chão escreve “assassino”.
Então lembro que ele é alguém que conheci há certo tempo e que o matei. Ia me
esquecendo desse homicídio, só não esqueci que escondi isso dos outros.
Homens e mulheres mentem, escondem emoções e fatos.
Uns são loucos ocultos. Alguns tentam conhecer os outros, mas não param pra
pensar que talvez não conheçam nem a si mesmos e que muitos dos outros não se
conhecem. Essas pessoas nunca leram nada sobre Sócrates, que dizem que dizia
“Conhece-te a ti mesmo”. Não quero beber veneno, como Sócrates, mas também não
quero passar o dia todo bebendo apenas água.
Homens e mulheres mentem, escondem emoções e fatos,
enganam uns aos outros. Então por que buscamos a companhia dos outros? Seremos
movidos por nossos interesses ou somos convencidos pelo interesse dos outros?
Seria tudo uma questão de interesse, de egoísmo? Talvez não. Talvez se alguém
pudesse ler os pensamentos dos outros não teria tempo pra entender os seus, mas
talvez chegasse ao menos a uma resposta pra cada uma dessas perguntas. Já parou
pra pensar que uma determinada pergunta pode ter mais de uma resposta? Então
pra quê fazer muitas perguntas ao mesmo tempo?
Ouço o barulho de algo se arrastando pelo teto da
cozinha. De longe vejo as grandes sombras que o misterioso rastejador faz ao passar
perto da lâmpada. Seu corpo é disforme.
Ele tira minha atenção do cadáver. De repente este último abre os olhos e sussurra
pra mim:
- Um demônio vive debaixo do armário da cozinha...
Você nunca o viu? As corujas me disseram que ele quer companhia. Ao menos por
esta noite.
Ouvi atentamente e tenho certeza que meu rosto
esboçou um misto de curiosidade, medo e incredulidade. Há mesmo um demônio
debaixo do armário da cozinha? Esse defunto acabou de falar comigo?
Não quero que me vejam como um assassino de coisas do
passado, então posso tentar convencer a todos que foi o tal demônio da cozinha
que matou esse pobre coitado que foi jogado no chão do meu quarto. Minutos
depois o barulho no teto para e um homem muito bonito entra no quarto. Jogo
vinho na cara dele e ele me xinga. Sim, eu queria mesmo me embriagar e escrever
nesse estado.
Eu rio da cara do homem bonito e me divirto com isso
porque ele é como as demais pessoas: mente, engana, usa máscaras, esconde
interesses. Se contar o fato de que é muito bonito e que talvez possa levar a
mulher que quiser pra cama, já que sua aparência mescla beleza com algo
misterioso. Isso é legal! Isso é sair da rotina! São enigmas a serem
desvendados! Bebo uma taça de vinho de uma só vez porque lembro que também sou
um humano, por mais que eu tenha repentinas e temporárias vontades de ter
nascido sob a forma de uma raposa, aí pelo menos eu seria mais astuto. O vinho
desce rasgando e queimando a garganta. Então entendo porque os indígenas das
estórias em quadrinhos chamam o vinho de “água de fogo”.
Passada sua raiva, o demônio lambe o vinho do seu
corpo e começa a conversar comigo. Ele tem uma voz gutural e um olhar
penetrante, gélido. Parece que procura meus segredos mais sombrios. Percebo
claramente o tom de ironia de suas frases. Parece que fala sem querer falar. Ele
pergunta onde fica a escada pro Paraíso. Digo que nem sei do que ele está
falando e se soubesse, não diria.
- Imagine se o Mal entrasse no Paraíso?! Se Bem e Mal
se misturassem?! – falei.
- Mas o mundo é assim mesmo, seu tolo! – disse o
demônio.
Olho pro defunto que continua morto. Digo ao demônio
que o defunto falou comigo instantes atrás. O demônio gargalha e diz que além
de tolo, sou louco. Ele tenta me convencer, me ludibriar, como qualquer um de
nós faria, mas eu digo que conheço de cor a história das tentações de Cristo no
deserto e das tentações de Buda na floresta. No caso de ambos, foram três
tentações, no momento em que eles estavam em atividades espirituais. Digo ao demônio
que escrever é minha espiritualização e que ele me deixe em paz. Ele insiste. Pra ele
me deixar em paz, lhe empresto meu exemplar de O Casamento do Céu e do Inferno, de William Blake. Talvez Blake, em
suas visões sobrenaturais, tenha escrito a localização da escada pro Paraíso. O
demônio sai do quarto, contente com o livro, e se esconde no escuro debaixo do
armário da cozinha pra ler sossegado.
“A Eternidade estremeceu ao ver
O Homem gerando a semelhança
De sua própria imagem dividida!”
“O caminho do excesso leva ao palácio
da sabedoria!”
Da cozinha, o demônio grita essas sentenças do livro,
com uma voz doce de alguém que conheci há muito tempo, tanto que cheguei a
pensar que essa pessoa invadiu o apartamento, mas lembro que é só mais uma
falácia do demônio. Essa pessoa não fala mais comigo como antes, então ela está
morta. Pouco importa se ela está viva. Pra mim está enterrada a sete
palmos!
O demônio cessa sua gritaria e o cadáver no chão do
quarto permanece morto. Não há ninguém mais pra se relacionar. Não há ninguém
na cidade. Só eu. Há muitos papéis querendo ser lidos, mas eles não dizem nada
com nada. No fim das contas todas as teorias dependem mais de quem vê do quê do
que se vê.
Preciso dormir.
Acordei suado. Ainda estava escuro. Era madrugada.
Não havia mais corpo no chão, nem demônio na cozinha.
Goiânia, 20/04/12
Literatura
Fantástica
Segundo o crítico estruturalista francês de origem
búlgara, Tzvetan Todorov, o fantástico
marca presença numa estória em que um acontecimento anormal pode ter duas
explicações: uma explicação natural e portanto, racional, a partir daí a
estória seria classificada no ramo estranho,
e uma explicação sobrenatural, a partir daí a estória seria classificada no maravilhoso. O fantástico hesita entre essas duas
explicações, assim, é ambíguo, deixa o leitor ou o autor/narrador em dúvida.
Escrevo contos fantásticos e resolvi começar a
produzir crônicas na mesma vertente por achar mais fácil criar estórias menores
e mais simples a partir do cotidiano, o que não faço muito com os contos. Solidão foi a primeira crônica que
produzi nesse campo, unindo o fantástico
à metáforas.
Cabe ao leitor decidir uma ou nenhuma explicação para
os casos anormais que narrei. Como autor e narrador, já fiz minha escolha.
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