Um fantasma ronda o centro de
Goiânia: eu. Vagava pelas ruas pensando em um texto para esta semana. No fim do
passeio noturno, o tema se manifestou: crianças em situação de rua.
Voltei para casa em uma bike
comunitária. Quando a devolvi em uma das estações, um garoto puxou conversa. Já
o vi antes, largado pelas ruas, mas hoje ele estava sóbrio, vestido, calçado,
limpo e com uma mochila enorme. Estava ali a esmo, mexendo nas bikes estacionadas.
Montou em uma e disse:
- Nossa, tio, tô com raiva dum cara. Fui tirar a bike
aqui e na hora ele montou e saiu correndo. Vagabundo... Se eu achar ele, vou
matar ele.
- Precisa matar não, moço – respondi.
Eu tinha duas garrafas com água. Ele
pediu e lhe dei uma. Ele bebeu em poucos gut-guts. Depois, pediu a outra
garrafa. Falei que precisaria dela, sorri e parti.
Saí apressado devido a uma
mensagem no meu Whatsapp. Era algo que eu precisava solucionar de casa o quanto
antes. Porém, chegando ao lar doce lar, vi que meu problema era bem classe
média: relativamente fácil de resolver, nada ameaçador à sobrevivência da
civilização. Então evoquei aquele garoto falando sobre o “roubo” da bike.
Foi engraçado o seu pobre
fingimento de indignação. Sua imaginação infantil se expressou com uma
mentirinha boba para puxar conversa. Raciocinei que ele não tem cartão de
crédito para comprar um passe pelo aplicativo para destravar uma das bikes.
Logo, impossível alguém ter roubado a bicicleta que ele nunca havia liberado!
Recordei que ele também queria minha
outra garrafa. Talvez para usar crack, como já o vi. Ele ainda tem a
inocência tecedora de mentirinhas bobas, mas ela declina em ruínas junto com a
civilização.
Então me senti como o narrador do
grande poema Tabacaria: “E o universo reconstruiu-se-me sem ideal nem
esperança”.
Mas nenhum dono de tabacaria
sorriu.
09 de setembro de 2019