Como Um Coração Partido Me Perturbou Na Madrugada
Por Thiago Damasceno
O
autor tomou a liberdade de alterar o nome dos envolvidos e de não mencionar
datas precisas para evitar possíveis possibilidades indigestas com as pessoas
da trama.
Os editores
Se eu existisse na
Terra-Média de Tolkien, certeza que seria um hobbit de Bolsão. É porque sou do
tipo que prefere ficar no aconchego da toca, mas quando uma aventura aparece,
eu caio dentro, querendo ou não e felizmente ou não.
Foi assim numa madrugada (des)
qualquer.
Estava assistindo Romasanta: A Casa da Besta quando a luz
foi pra Mordor. Então relâmpagos e trovões passaram a compor a sinfonia da
noite. Os relâmpagos iluminavam toda a kitinete,
tirando raios-X das paredes. Os trovões faziam o ar vibrar. Ambiente ideal pra fabricar
a criatura do Doutor Frankestein.
Então os elfos de Valfenda chegaram
e a luz voltou. Terminei de ver o filme. O sono já havia então se fortalecido
nas cavernas do inconsciente. Dormi.
Oh, fatídico Destino, por que não me
destes pelo menos um singelo sinal do que viria em seguida?! Por que és tão
inexorável perante nossas tolas mortalidades?!
Chega de melodrama barato. Vamos aos
fatos.
Era mais ou menos uma
da madrugada quando acordei com o interfone tocando.
- Ti-ri-ri-rrinnnn!!!
Fazia
um silêncio denso, e aquilo vibrou o ar que nem os trovões. Me levantei. Ouvi
uma discussão na kitinete vizinha e
um abre e fecha de portas. Era um casal discutindo. O interfone voltou a tocar.
Mais portas abrindo e fechando. Na verdade, eu estava tão semisonâmbulo que não
lembro da quantidade de sons e da ordem das coisas. Minhas percepções dormiam.
Sei que após certo tempo o silêncio retornou
e voltei a dormir.
Então o interfone tocou de novo. Alguém
estava na calçada tentando entrar, mas todos os moradores do lote têm suas
próprias chaves. Quem seria àquela hora?
Não
lembro o que fiz. Sei que quando o bendito interfone tocou de novo eu levantei
na cama (de novo) e só então resolvi atender com um Mas que diacho!... na cabeça.
- Oi... – falei.
Ninguém, só aquele ruído de
estática.
- Oi... – repeti.
Uma moça atendeu. Chorava. Soluçava.
Sofria.
- Moço, abre pra mim,
por favor... – pediu.
- Hãã?!
- Abre pra mim, por
favor... Eu preciso entrar.
- Quem tá falando?
- É a Helena. Deixa
eu entrar, por favor...
Helena.
É o mesmo nome de uma personagem de um romance que estou escrevendo. E a
minha Helena se envolve com uns sujeitos perigosos. Pensei: “Tô num episódio de Além da Imaginação e meus personagens viraram realidade.
Fodeu!...”.
Também pensei que seria um golpe e
que quando eu abrisse o portão, uma ruma de assaltantes fortemente armados
invadiria o lote e roubaria todas as kitinetes.
- Deixa eu entrar,
por favor, eu prometo que vou deixar o portão aberto...
Se ela soubesse o que se passava na
minha mente, tenho certeza de que não teria usado esse argumento.
- Por favor, eu tenho
que falar com o Menelau. Deixa eu entrar.
Então
fui despertando mais e mais e entendendo que esse era o casal que tinha brigado
minutos atrás. Menelau é meu vizinho. Só conheço de vista.
Ele é
universitário e um dia desses vi uma moça com cara de universitária saindo
semiabruptamente da sua kitinete. Sua
saída coincidiu com a hora em que eu estava chegando à minha toca hobbit. Seria
a mesma moça daquele dia? Esses jovens de hoje...
Preocupado
também com uma possível violência à moça, perguntei:
- Ele tá te
machucando?
- Ele me magoou... –
disse ela, meiga como uma heroína mal amada de uma novela mexicana.
- Mas é caso de
polícia? – insisti, em busca da verdade.
- Ele me magoou...
- Ah, moça, então eu
não tenho nada a ver com isso não... – afirmei, frio e calmo como um vulcano,
como eu havia ficado durante todo o diálogo.
- Deixa eu entrar,
por favor...
Baseado nessa pequena antiterapia e
na ideia de que Se ela conseguiu falar
isso tudo do lado de fora, quer dizer que não está sofrendo violência física,
telefonei pra Agamenon, dono das kitinetes,
que mora no mesmo lote.
- Alô – disse ele,
com uma voz bastante acordada pro horário.
- Seu Agamenon, é o Bilbo
Bolseiro. Desculpa incomodar, mas é que tem uma moça aqui chorando e querendo
entrar...
- Ah, é a ex-namorada
do Menelau. Ele disse que ela tá meio descontrolada da cabeça.
- Ah tá... Ela não
para de interfonar.
- Tira o interfone do
gancho.
Obedeci. E tentei voltar a dormir.
Demorou. Sonhei com elfos, hobbitses nojentos
e cavalos de madeira.
No dia seguinte, encontrei Seu
Agamenon e ele resumiu a história, que bate com o que pude presenciar.
Alguém abriu o portão do lote pra
que Helena pudesse entrar. Ela o fez. Em seguida, Helena pulou o muro do
castelo de Menelau e este fez questão de levar a moça de volta pra fora. A
partir disso, não sei por quê Hades ela escolheu interfonar na minha toca de
hobbit pra tentar entrar de novo em Tróia.
Acontece. Vez ou outra, a aventura
nos chama.
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