Assim como deve ter sido para a
maioria dos brasileiros e brasileiras, minha semana passada não foi fácil. Não
bastassem desventuras na vida pessoal, sabemos muito bem como anda o contexto político-social
do país. Quem tem um mínimo de sensibilidade há de concordar comigo: é um golpe
(ou até mais) a cada dia! Mas nem tudo são trevas... a arte está aqui, ali e
acolá para provar isso! E dentre todas as formas artísticas, destaco aqui a
música!
Música não é religião, mas também
arrebata! E semana passada, fui arrebatado três vezes por três obras musicais
distintas. Mas o que é esse arrebatar da arte?
Creio que ele é semelhante ao
arrebatamento presente nas narrativas e imaginários religiosos. É quando você
entra em contato com a manifestação de algo e esse algo te transporta, no nível
da consciência, para um outro plano, para uma outra realidade, realidade essa mais
bela, mais prazerosa, mais reconfortante, mais emocionante, enfim, uma
realidade com mais êxtase. Não é à toa que o Minidicionário Escolar Aurélio
(2000), dentre outras explicações, define o verbo “arrebatar” como “enlevar,
extasiar”.
Em entrevista ao jornal El País
em 2018, a estudiosa de religiões Karen Armstrong comparou a transcendência
religiosa com o transe musical: “A
música é significado sem palavras. Nos toca profundamente. É uma arte física,
não uma viagem mental. Durante muito tempo, os instrumentos foram fabricados
com tripas e tendões, algo muito físico, mas ao mesmo tempo [a música] é
misteriosa porque chega até nós sem palavras e ajuda na nossa própria
transcendência”.
Mas voltando a tema principal
deste texto... quais obras abalaram meu coração e minha mente?
A primeira foi o álbum “Moving
Waves” (1971), da banda holandesa Focus, um dos grandes nomes do rock progressivo.
Nas seis faixas do disco, os instrumentos predominam. Os arranjos harmoniosos
garantem expressividades riquíssimas que lembram trilhas sonoras belíssimas de
filmes clássicos. A impressão que tenho, ao ouvir esse disco, é que estou
dentro de um grande filme, daqueles divisores de água na sétima arte.
O segundo arrebatamento veio com
o álbum “Ashes Are Burning” (1973), da banda Renaissance, de mesmo gênero do
grupo anterior, mas de origem inglesa. Sem dúvida, o destaque da banda é o
vocal de Annie Haslam, de uma beleza e afinação únicas! O instrumental da
banda, que mescla guitarras elétricas e levadas mais folks ao piano e ao
violão, não fica para trás.
Por último, uma amiga herdeira de Frida Kahlo,
recém-chegada do planeta México, me indicou a canção “Pai e Mãe”, do grande
Gilberto Gil. Essa música, quarta faixa do álbum “Refazenda” (1975), é um
brinde à psicanálise. O eu-lírico da letra expressa que suas relações com outros
homens e mulheres são extensões de suas relações com o pai e a mãe, respectivamente:
“Eu passei muito tempo aprendendo a beijar
Outros homens como beijo o meu pai
Eu passei muito tempo pra saber que a mulher
Que eu amei, que amo, que amarei
Outros homens como beijo o meu pai
Eu passei muito tempo pra saber que a mulher
Que eu amei, que amo, que amarei
Será
sempre a mulher como é minha mãe”.
Apesar da temática profunda, a
canção é meiga e suave. Curiosamente, não carrega em si o peso dramático que há
nos estudos de Sigmund Freud. Para quem tem (ou quer ter) um “espírito livre”,
“Pai e Mãe” pode ser encarada como uma espécie de doce confissão de amor. Para
a legatária de Dona Kahlo, “Pai e Mãe” é um complexo de Édipo resignado, em
paz.
Pois bem, caras leitoras e caros
leitores, esses foram meus arrebatamentos da semana passada. Já sinto até
saudades dos momentos únicos de euforia que tive ao descobrir essas obras, mas
tenho certeza que a arte, como um todo, ainda me revelará muitos e muitos
momentos de êxtase!
Thiago Damasceno, 18 de
agosto de 2019