Era uma noite fria de domingo quando eu
voltava do cinema com uma amiga. Havíamos assistido ao filme “Assassinato no
Expresso Oriente”. Paramos em um dos semáforos da Praça Cívica por força da
ordem furiosa da luz vermelha. Estávamos a contemplar o clássico cenário
natalino da praça quando um pedinte apareceu.
Ele
cumpriu sua função social: pedir dinheiro para sobreviver nos lembrando o
quanto a sociedade é desigual, mesmo que
tal desigualdade social nem sempre ressoe em nosso interior emocional
como deveria. Entre apelos e atropelos discursivos, ele falou algo como “não
queria estragar o Natal das crianças”. Não entendi bem se ele havia destruído
alguma coisa na praça sem querer ou se queria comprar algo para os filhos dele.
O fato é que ele encostou no retrovisor do carro e começou a discursar.
Falou
das dificuldades da vida, etc, etc, etc... Conversa banal sobre o óbvio
infernal. Luz verde, passagem livre. Semeamos mais distâncias na desigualdade
abissal que havia entre nós e ele. No caminho, minha amiga levantou uma questão
importante, no campo das emoções. Eu, como de praxe, estava concentrado no
campo material.
- Tadinho dele... Só queria desabafar – disse
ela.
- Pois é... – respondi.
- Tá vendo, ele não tem nada, nem ninguém pra
ouvir as noias dele. A gente pelo menos tem um ao outro pra ficar ouvindo as
noias, as angústias e os dilemas.
- Realmente... – respondi de novo, mas dessa
vez absorvendo profundamente a seriedade daquele assunto.
Maldita
desigualdade social: não basta deixar muitos na miséria material, tem que tirar
deles até boas companhias humanas, um ombro amigo, um ouvido atento, um olhar
carinhoso. Desse jeito, não há Natal que não tenha estragos.