ThiagoDamasceno: março 2013

domingo, 31 de março de 2013

Crônica: Ouvidos Caninos

Crônica escrita em 13/11/11 e revisada um dia desses...

Ouvidos Caninos

Por Thiago Damasceno

            Sabe aqueles dias em que você acorda com ouvidos de cachorro? Não?! Eu sei. Hoje acordei assim, ouvindo intensamente, com a percepção auditiva muito aguçada. Ou então foram os sons do mundo inteiro que resolveram me danar.

            Foi difícil prestar atenção à excelente aula de Teoria da História cujo conteúdo era a filosofia de Nietzsche. A atenção era desviada porque todas as outras salas do corredor estavam barulhentas. Conversas, gritos, risos e professores proclamando seus conteúdos. Pra aumentar ainda mais o barulho, os carros que passavam na rua do lado ou estavam fazendo racha em plena luz da manhã ou estavam usando os primeiros motores fabricados pra navios, porque o som deles era ensurdecedor. Parecia que a parede da sala tinha virado rua. Pude ouvir profundamente os roncos raivosos e apressados daquelas máquinas de poluição atmosférica e sonora.

            Voltando de ônibus pra casa, dei continuidade à minha leitura de Drácula. Ainda bem que a estória do livro é excelente, senão o agonizante motor do ônibus não teria me deixado ler direito. Mas antes de ir pra casa, fui pra biblioteca renovar o aluguel do livro mencionado. Pra minha surpresa o estabelecimento estava fechado. Natural, natural. A Lei de Murphy se manifestou: o dia começou angustiante e iria continuar assim. Desiludido quanto à renovação do livro, voltei pra casa a pé. O barulho da rua estava infernal. O movimento era o de sempre: pessoas apressadas, carros, ônibus e motos quase à velocidade da luz, discos voadores, ataques de zumbis, enfim, aquela bagunça que é o centro de uma capital ao meio-dia. Acontece que o que me incomodava não era o movimento, mas o barulho. Tinha se intensificado ou era eu sofrendo uma mutação auricular. Mas o fato é que meus ouvidos estavam doendo!

            Cheguei em casa cansado de tanto correr da balburdia urbana. Enfim, o sossego. Quer dizer, seria o sossego, caso o vizinho do apartamento de cima não estivesse reformando seu lar. O barulho das batidas de martelo era de matar, mas pior seria se fosse um final de semana em que eu chegasse em casa cansado e esse mesmo vizinho estivesse fazendo churrasco, bebendo cerveja e ouvindo pagode.
           
            Sem ofensas aos finais de semana, churrasco e à cerveja.

domingo, 24 de março de 2013

Portuguesando: Denotação e Conotação?

Qual a Diferença Entre Denotação e Conotação?

Por Thiago Damasceno

            “Você é um mala! Fica nessa vida pra você ver a bomba que você vai levar no fim do ano!” – disse uma amiga preocupada e direta para o seu amigo, que não era eu. Sempre fui estudioso. Mas essa expressão está mais carregada com denotação ou conotação? Leiamos este texto para responder a essa dúvida que há milênios assola muitos brasileiros! (Isso foi uma hipérbole).

            Toda palavra tem um significado habitual e direto. Mas também uma palavra pode ter vários significados, dependendo do contexto em que é usada. Por exemplo, a palavra “corrente”. Podemos pensar logo em um emaranhado de metal usado para prender alguém ou algo, mas quando lemos “O jornal anunciou que haverá uma forte corrente de ar frio” e “Sua culpa no homicídio é corrente” logo temos significados diferentes. No primeiro exemplo, “corrente” significa fluxo e no segundo exemplo, significa fato sabido de todos. Essa variedade e multiplicidade de significados é a famosa polissemia, que enriquece as línguas. Realizadas tais preliminares explicacionais, foquemos agora no objetivo do texto. Alguns exemplos foram tirados da apostila para concursos do professor Jonas Rodrigo Gonçalves.

            A denotação (ou linguagem denotativa) acontece quando usamos palavras e expressões nos seus sentidos usuais, literais, objetivos, conforme seus significados no dicionário. Por exemplo: “A corrente marítima manteve o barco na rota”. O sentido de corrente e barco nesse trecho são os habituais.

            A conotação (ou linguagem conotativa) acontece quando as palavras e expressões são usadas de forma criativa e original, adquirindo novos significados. Há muita imaginação, emoção e subjetividade na conotação. Como exemplo, um trecho da belíssima Roda-Viva de Chico Buarque: “A gente vai contra a corrente/ Até não poder resistir/ Na volta do barco é que sente/ O quanto deixou de cumprir/”. Corrente aqui pode ser visto como sinônimo de poder dominante e barco, como sinônimo de resistência. A canção fala sobre resistência durante a ditadura militar, poder político (corrente) dominante no período em que a obra foi composta.

            Por ser mais criativa, a linguagem conotativa é usada em textos literários, como romances, contos, poemas e letras de música. Outro exemplo são alguns versos do famoso poema Canção do Exílio, de Gonçalves Dias: As aves que aqui gorjeiam/ Não gorjeiam como lá/’. O eu-lírico do poema está distante de sua terra natal e expressa sua saudade. Podemos interpretar o poema no seu sentido denotativo? Claro, pois o eu-lírico sente saudades do canto dos pássaros de sua terra natal. Mas também podemos interpretar o poema conotativamente, pois aves também significam todas as diferenças entre a terra natal do eu-lírico e o lugar em que ele se encontra agora. Enfim, como diz a canção Sonho de Uma Flauta do grupo O Teatro Mágico: “Nem toda palavra é aquilo que o dicionário diz”.

            Porém, nem só de literatura vive a linguagem conotativa. Ela também é usada em textos não-literários escritos ou orais (reportagens, mensagens publicitárias) e na fala cotidiana, informal. No trecho do começo do texto: “Você é um mala! Fica nessa vida pra você ver a bomba que você vai levar no fim do ano!” temos significados criativos para “mala” e a expressão “levar bomba”, significados fáceis de entender para os fluentes em português. 

sábado, 9 de março de 2013

Séries de TV: O Final de Lost (Parte 03)

Comentando o Final de Lost – Parte 03
Os Gêneros Literários Estranho, Fantástico e Maravilhoso & o “deus ex machina”

Por Thiago Damasceno

            No post anterior comentei a última temporada da série e elaborei uma lista de perguntas e respostas para ajudar no entendimento desse fenômeno pop. Nesta postagem concluo essa epopeia de comentários sobre seu conturbado final, que deixou a maioria dos fãs indignados (me incluo nesse rol). Também destaco a influência de três gêneros literários em Lost: o estranho, o fantástico e o maravilhoso, além do recurso narrativo deus ex machina. Os roteiristas de Lost optaram por um final sobrenatural para a série, uma solução fácil, mas lícita se compreendermos o gênero maravilhoso no seriado. Este texto ficou grande para um blog, mas não podia tratar o assunto de forma mais resumida e nem dividir o texto novamente. Sua leitura será compensatória para os fãs de literatura e séries. Vejamos então o uso da literatura em Lost.



            Como disse antes, é inegável a influência da literatura nos roteiros e ideias de Lost. Os roteiristas e produtores afirmam isso nos making offs dos DVDs e muitos livros aparecem nos episódios ou são citados pelos personagens, destacando A Volta do Parafuso, de Henry James; Ratos e Homens, de John Steinbeck; Dostoiévski, Charles Dickens, Stephen Hawking com a sua Uma Breve História do Tempo, entre outras e outros. Quase todas as obras são ficções e algumas pertencem ao gênero fantástico. A exceção é a obra de Hawking, que no contexto do seriado está mais ligada ao gênero estranho. Vamos aos conceitos desses gêneros.

O gênero fantástico e seus vizinhos, o estranho e o maravilhoso

            Para dissertar sobre os gêneros literários uso a obra Introdução à Literatura Fantástica, do crítico estruturalista francês de origem búlgara Tzvetan Todorov. Esse estudioso aborda as estórias (ficções) com acontecimentos extraordinários e as divide basicamente em três categorias: maravilhosas, fantásticas e estranhas. Destaco o cuidado para tomarmos com o termo “extraordinário”, que se refere a acontecimentos incríveis, e não exatamente “fantásticos” ou “sobrenaturais”.

            Antes de aprofundar a discussão sobre os conceitos desses três gêneros literários, é bom começar com simples definições:

maravilhoso – quando os acontecimentos extraordinários não podem ser explicados racionalmente.
estranho – quando os acontecimentos são extraordinários, mas podem ser explicados pelo uso da razão ou da ciência.
fantástico – quando a narrativa é incerta, pois os acontecimentos extraordinários podem ser explicados pelo sobrenatural ou pela razão. Personagem, narrador e leitor vivem com a ambiguidade de interpretações.  


O maravilhoso

Para tratar do maravilhoso, não uso apenas Todorov, mas também o famoso historiador francês Jacques Le Goff, que analisa o maravilhoso do Ocidente medieval sob a perspectiva antropológica, ou seja, culturalmente ampla, enquanto Todorov analisa o maravilhoso sob o ponto de vista da literatura. Entretanto, é possível relacionar os estudos dos dois autores e o próprio Le Goff cita e elogia Todorov em sua obra O Maravilhoso e o Quotidiano no Ocidente Medieval.

Le Goff defende que o maravilhoso e especificadamente, a maravilha, é algo que primeiramente afeta a visão, causando susto e surpresa, mas que pertence à natureza. A maravilha, por mais surpreendente que seja, é terrestre. Ele cita a definição do monge inglês Gervásio de Tilbury em 1210: “Chamamos de maravilhas os fenômenos que escapam à nossa compreensão, embora sejam naturais”. Le Goff ainda diz sobre como nós entendemos o maravilhoso hoje e como os homens da Idade Média o entendiam: “Contudo, enquanto nós definimos uma categoria, um tipo de realidade, a Idade Média latina vê um conjunto, uma coleção de seres, fenômenos, objetos, possuindo todos a características de serem surpreendentes, no sentido forte da expressão”.

Podemos partir desses conceitos de maravilhoso e maravilha para entendermos melhor os estudos de Todorov.

Segundo esse estudioso, nas estórias maravilhosas, os fatos extraordinários não podem ser explicados racionalmente, pois o sobrenatural explica tudo ou nem precisa de explicação. Como exemplo, os contos de As Mil & Uma Noites¸ que se enquadram perfeitamente no gênero: gênios de lâmpadas, tapetes voadores, animais que falam, enfim, toda uma coleção de seres extraordinários e sobrenaturais que não podem ser explicados. São apenas aceitos porque fazem parte do ambiente, são naturais, embora não possam ser entendidos, como defendeu o monge inglês Gervásio de Tilbury.

Após essas divagações, onde está o maravilhoso em Lost?

Em quase toda a série, chegando ao máximo no final. No último episódio os personagens descobrem que estão mortos, mas que têm uma segunda chance de redenção e após aprenderem a lição, vão para um reino de luz. É um final espiritual, com intervenção divina, caracterizado pelo uso do recurso narrativo deus ex machina, que discutirei mais adiante. Esse é um dos motivos para o final do seriado não ter agradado a muitos gregos e troianos. Outras maravilhas em Lost são: a juventude infinita de Jacob, Esaú e Richard Alpert, o coração-luz da ilha, a fumaça negra (transformação de Esaú após cair no coração-luz da ilha), a mãe de Jacob e Esaú, cuja origem e idade são desconhecidas, e todos outros pequenos fatos derivados desses que citei, incluindo, claro, todo aquele ambiente mitológico em volta dos irmãos Jacó e Esaú e sua mãe.

            Esses fatos extraordinários, como não têm explicação racional, são maravilhas e com isso, precisam ser aceitos como tais. Isso causou incômodo nos fãs, pois como já vimos (e veremos), muitas coisas em Lost foram explicadas e outras, não. Geralmente, se espera que se explique tudo ou que não se explique nada, mas Lost não pegou apenas características do gênero maravilhoso, também pegou traços do fantástico e do estranho.




O fantástico

            O fantástico é o gênero do hesito (dúvida, incerteza). Não confundir “hesito” com “êxito” (sucesso, resultado feliz). Numa narrativa fantástica, os personagens, o leitor e em alguns casos, o narrador, não sabem se explicam os fatos extraordinários pelo sobrenatural ou pela razão. O fantástico tem uma dupla interpretação. Como exemplo, a já citada obra A Volta do Parafuso¸ de Henry James. Nela, uma jovem governanta vai cuidar de duas crianças órfãs numa casa de campo isolada. A casa e seus moradores começam a ser assombrados por possíveis fantasmas da ex-governanta e de um criado. Digo ”possíveis fantasmas” porque os fantasmas podem mesmo ser fantasmas (explicação sobrenatural) ou podem ser projeções das neuroses e paranoias da jovem governanta (explicação racional, que por mais incrível que seja, é verossímil e tem base racional).

            O romance é escrito de uma forma que não permite uma decisão objetiva. O leitor hesita entre uma e outra explicação e precisa escolher. Se a escolha for para a explicação sobrenatural, o romance passa a pertencer ao gênero maravilhoso. Se o leitor optar pela explicação racional, o romance passa a pertencer ao gênero estranho. Vê-se então que o fantástico pode ser um gênero transitório, mas ainda assim é um gênero. No romance de James não fica claro se a estória é maravilhosa ou estranha. Logo, ela é fantástica. Outras estórias, porém, permanecem fantásticas, mas depois partem para o maravilho ou estranho. É o caso de A Queda da Casa de Usher, de Edgar Allan Poe.

            Nesse conto, o narrador em primeira pessoa vai passar alguns dias com seu amigo Roderick Usher, que está muito doente. No decorrer da estória, a irmã de Usher também adoece, é enterrada viva, sai da tumba e mata o irmão enquanto o casarão da família desmorona durante uma tempestade. Tudo é incrível e extraordinário, mas é explicado racionalmente. No desenvolvimento da obra o autor escreve de uma forma que permite tanto explicações racionais quanto sobrenaturais, mas no final, a explicação racional prevalece. A obra era fantástica, mas passa a ser estranha. Concluindo, o efeito fantástico dura enquanto dura a hesitação. Essa hesitação é importante porque provoca reações nas personagens e no leitor, geralmente o medo. O maravilhoso, na literatura, não provoca exatamente (ou por si só) essa reação. O estranho provoca um pouco. Vivenciamos muito medo e suspense em Lost, incluindo nos traços maravilhosos da série.

            Identifiquei os seguintes momentos fantásticos em Lost. Digo “momentos” porque depois eles viraram maravilhosos (sobrenaturais) ou estranhos (explicados racionalmente):

1 – A presença de ursos polares na ilha: seres mágicos ou reais? Depois, vemos que são reais, criados em laboratório pela Iniciativa Dharma.

2 – As visões que alguns sobreviventes do voo tinham de mortos ou de pessoas que não estavam mais na ilha, como o falecido pai de Jack, o finado padre e irmão do Sr. Eko e o garoto Walt: espíritos ou ilusões das mentes dos vivos? Depois, vemos que o sobrenatural entra nesses casos, mas as pessoas vistas não são espíritos, são as peripécias de Esaú, o ser mágico que pode assumir diversas formas.

3 – Os sussurros ouvidos na floresta: outros habitantes da ilha ou espíritos? Nesse caso o fantástico se prolonga, pois primeiramente, os personagens e espectadores pensam que os responsáveis pelos sussurros são os Outros (habitantes antigos da ilha), mas nos últimos episódios o espírito de Michael revela a Hurley que os sussurros vêm dos espíritos.

4 – A fumaça negra: um ser mágico ou uma experiência da Iniciativa Dharma? Também na última temporada, descobrimos que é um ser mágico, mais uma das formas de Esaú.

5 – Poderia citar outros momentos fantásticos, mas iria me alongar muito, mas o que mais considerei fantástico foram os números (4, 8, 15, 16, 23, 42) e sua maldição: sobrenatural ou racional? O seriado acabou e essa hesitação permaneceu. Personagens e espectadores descobrem na segunda e na quinta temporada que a sequência numérica está na tampa da escotilha da Estação Cisne, que explodiu. Depois eles foram transmitidos pela torre de comunicação da ilha, cruzando o Pacífico e chegando indiretamente a Hurley, causando muito azar. Sabemos que os números têm uma origem e difusão racional, mas não sabemos o motivo deles serem amaldiçoados. A explicação inclina para o sobrenatural. Esse sim é o que pode ser chamado de fantástico puro, cuja explicação geralmente vai para o sobrenatural, tornando a estória maravilhosa.


O estranho

            Diferente do maravilhoso e do fantástico, o estranho brinda nossas mentes angustiadas com explicações racionais. Como exemplo: a queda do avião pelo distúrbio eletromagnético da ilha (excluindo as ações mágicas de Jacob), as viagens no tempo, bolsões magnéticos e dimensões paralelas. São acontecimentos extraordinários e que de fato não são comprovados hoje pela ciência, mas são possíveis teoricamente, dependendo do cientista e da visão cientificista. Enfim, por mais que sejam incríveis, eles têm lógica, têm uma explicação científica. Logo, são estranhos.


             Creio que o motivo de desconforto dos fãs com o final da série não é exatamente pelo fato dela ter terminado de forma maravilhosa e de ser, em grande parte, uma obra maravilhosa. Creio que o desconforto vem da mistura que o seriado faz com os três gêneros (maravilhoso, fantástico e estranho). Geralmente se espera que uma obra use apenas um desses gêneros ou o fantástico por um tempo e depois, o maravilhoso ou estranho, mas os criadores de Lost fizeram uma salada com tudo, explicando certas coisas racionalmente, muitas, de forma sobrenatural e deixando outras em aberto, com características fantásticas. Essa salada de gêneros literários e de criatividade não é proibida, claro, mas causa confusão.

            Vamos para o ápice do maravilhoso na série, o deus ex machina.


Deus ex machina: Que o Deus Venha!

            O deus ex machina é um recurso narrativo criado na Antiguidade e bastante usado no teatro grego, consistindo na intervenção dos deuses do Olimpo quando as ações humanas poderiam causar mais injustiças. No final da estória os deuses interferiam na narrativa salvando os heróis, castigando os vilões ou de outras maneiras. Segundo Braulio Tavares no seu artigo A solução que caiu do céu para a revista Língua Portuguesa: “Esses personagens eram descidos ao palco por um sistema de andaimes ou plataformas que pareciam descer do céu, sendo erguidas e baixadas através de roldanas”. Dessa técnica vem o nome deus ex machina, que pode ser traduzido como “deuses surgidos por meios artificiais”.

            Essa técnica narrativa vem sendo muito usada no cinema, na televisão, na literatura e ainda no teatro. Nos filmes de faroeste, o deus ex machina aparece quando a cavalaria surge inesperadamente para salvar brancos encurralados por índios hostis; nas estórias policiais, quando uma testemunha ou uma pista são descobertas pelo detetive; na ficção científica, quando alguma catástrofe natural (terremotos, tempestades, erupções vulcânicas) acabam com tudo. Cada gênero narrativo a usa de uma forma e em Lost não foi diferente, pois no final da série vemos que os personagens, na dimensão paralela, descobrem que estão mortos e continuam sua jornada espiritual, enquanto as aventuras na ilha continuam. A relação que a realidade paralela tem com a realidade na ilha, além dos personagens, é o fato de que a realidade paralela nasceu da explosão da bomba de hidrogênio no bolsão eletromagnético da Estação Cisne, na quinta temporada. Isso não se pode esquecer porque cansei de ver uma opinião geral que diz que as duas realidades não têm nada a ver com a outra. São poucas relações, mas elas existem.

            O deus ex machina acabo se tornando um clichê nas narrativas, mas essa não é a única crítica que se faz a esse recurso. Também se critica suas facilidade e artificialidade nas estórias. Como disse anteriormente, Lost se tornou um gigantesco nó de tramas e personagens e resolver tudo seria uma dificuldade, se é que seria possível. Com isso, a solução mágica, dizendo que todos estavam mortos, caiu do céu literalmente, serviu de consolo, mas foi uma solução fácil que não veio do contexto e circunstâncias do enredo da série, pois como já comentado, foi uma intervenção. Os personagens percebem que estão mortos e pronto, está tudo explicado e aceito!

            Contudo, deve-se considerar que isso foi sugerido desde a segunda temporada, quando personagens como Desmond Hume dizia: “Te vejo em outra vida, brother!”, ou o imortal Richard Alpert dizia: “Estamos todos mortos! E no Inferno!” e vez ou outra algum personagem também comentava algo fúnebre. A própria briga entre os irmãos Jacob e Esaú também foi sugerida antes, desde a primeira temporada, quando Locke jogava gamão com Walt, usando peças brancas e pretas, as cores opostas dos irmãos.

            Quanto aos irmãos, o interessante é que não fica claro, com exceção das cores, quem é mau ou bom. Esaú quer sair da ilha e Jacob não deve deixar. E só. Para isso, Jacob usou certos instrumentos maravilhosos (farol, espelho e luneta) para escolher possíveis futuros guardiões da ilha. Esse é um outro caso maravilhoso: Como Jacob pode simplesmente morrer ou deixar seu cargo de guardião? O templo mostrado no último episódio, onde os personagens se reúnem, é católico por fora e ecumênico por dentro. Vemos símbolos cristãos, islâmicos e até orientais, como o famoso diagrama do Taijutso Tu, marcando a presença do Taoísmo. Sou da opinião de que o final da série deveria ficar exclusivamente no conflito dos dois irmãos, mesmo que caísse no clichê do bem contra o mal. Seria um clichê melhor do que o clichê do deus ex machina.


             Outras maravilhas na série são a natureza da ilha e a essência dos irmãos. Afinal de contas, Esaú foi “enterrado” por Jacob e reaparece na forma anterior, de fumaça negra ou de algum morto. O que eles são? O que é exatamente a ilha? São coisas maravilhosas que não exigem explicação racional, embora nós, os espectadores, nos desesperemos por tais explicações.

 
Conclusão

            Reafirmo que o uso do sobrenatural no final de Lost não foi satisfatório, além de ser uma solução fácil, mas seu uso foi bem pensado em termos da utilização do gênero maravilhoso na série. A maior perturbação que o seriado causa não é solucionar algumas coisas, deixar outras em aberto e outras no sobrenatural, mas em usar muito os três gêneros: maravilhoso, fantástico e estranho. Discussões à parte, o final da série foi emocionante (a morte sempre é) e Lost marcou definitivamente a televisão em termos de produção, roteiro e criatividade, entrando na inesquecível galeria das séries de suspense, ficção científica e fantasia.



Referências bibliográficas


LE GOFF, Jacques; SCHMITT, Jean Claude. Dicionário Temático do Ocidente Medieval. Bauru: EDUSC, 2002, p. 105-120.

LE GOFF, Jacques. O maravilhoso e o quotidiano no Ocidente Medieval. Rio de Janeiro: Edições 70, 1990.

TAVARES, Braulio. A solução que caiu do céu. Língua Portuguesa, São Paulo, ano 04, nº 57, p. 14-15, julho de 2010.

TODOROV, Tzvetan. Introdução à literatura fantástica. São Paulo: Perspectiva, 4ª edição, 2010.