ThiagoDamasceno: abril 2012

sexta-feira, 27 de abril de 2012

Poemas: Repouso, O Céu É O Limite

Repouso

Preciso de repouso
Para ouvir o teu silêncio
E entender o que queres expressar
Preciso de repouso
Para ouvir o meu silêncio
E entender o que quero

Preciso de repouso para me sentir
Sentir meu coração bater
E sentir-me todo coração

Preciso sentir meu pulsar
E sentir o pulsar do mundo
Batendo na janela do meu quarto
Porque meu mundo interior
Vibra com as ondas que vêm de fora

Não quero música ao vivo
Não quero aplausos da plateia
Não quero o ronco dos motores
Nem discussões de idéias
Com tanto barulho eu não me ouço

Quero a tranquilidade de um céu suspenso
A quietude selvagem de uma montanha
E o silêncio perigoso de uma floresta
Musicada pela correnteza de um rio

Com tanto barulho eu não me ouço
Quero silêncio, quietude e solidão
Preciso de repouso


Thiago Damasceno



O Céu É O Limite

O arroz subiu
O feijão subiu
A farinha subiu
A fome subiu
Só não sobe a barriga cheia do povo

O gás subiu
A água subiu
A luz subiu
O aluguel subiu
Os juros compostos se amontoam
Na fila das dívidas
Só não o sobe o salário do povo

O dízimo subiu
A oferenda subiu
Jesus Cristo subiu
E cobra tudo lá de cima mesmo
Só não sobe a bem-aventurança ao povo

O suborno subiu
A traição subiu
Ter esperança, às vezes, dói
E o remédio subiu

Só não sobe a satisfação do povo

Thiago Damasceno

quarta-feira, 18 de abril de 2012

Crônica: Crepúsculo Diluviano

Crepúsculo Diluviano

Por Thiago Damasceno

“Pedestres, empurrando os guarda-chuvas uns dos outros, em uma infecção generalizada de mau humor, e perdendo o equilíbrio nas esquinas, onde outras dezenas de milhares de pedestres vinham deslizando e escorregando desde o raiar do dia (se é que esse dia chegou a raiar)”.

Charles Dickens, A Casa Soturna (1853)


Goiânia, 09 de abril de 2012, por volta de 19:40 min.

            Você é um graduando em História. Graduando de Licenciatura em História, para ser mais específico. Chega o momento em que você precisa fazer estágio em escolas públicas. É nesse momento que você vê com seus próprios olhos e intuição que, o sistema público de ensino brasileiro, nos níveis Fundamental e Médio, vem falindo. Mas a Esperança não morreu. Pior. Ela foi sepultada viva! Mas deixemos as discussões sérias pra depois...

            São cerca de 18:00 horas da tarde. Você precisa e quer voltar pra casa. Aquelas nuvens pesadas, negras, que pairavam baixas há horas, começam a derramar todos os seus líquidos. “É um toró!”, como se diz no Maranhão. “É um pé d´-água!”, como se diz em Goiás. “São os cavaleiros do Apocalipse!!!”, como diria um pregador louco de meio de rua. Enfim, uma chuva torrencial, justo na hora em que você iria embora.

            O que fazer perante essa doce, útil e por que não, “atrapalhante” intempérie natural? Você decide esperar, pois você tem aquela fé inabalável de que uma hora a tempestade vai passar e você poder voltar pra casa no seco. Ledo engano! Mas antes, vamos à história de uma espera.

            Você quer voltar pra casa e terminar de escrever aquele conto fantástico ao qual, só em criá-lo, você disse a si mesmo: “Fantástico!”. Nessa onda literária, você aproveita pra ler alguns contos do famoso escritor francês Guy de Maupassant. Graças aos CÉUS você tem um exemplar de bolso das estórias dele na sua mochila. Você lê. A chuva não passa. Você escuta algumas músicas via celular. A chuva não passa. Você entabula conversa com uma estranha que vai embora de carro com seu pai, mas claro, não pode lhe dar carona porque ela mora no outro lado da galáxia. E a chuva não passa!

            Você se volta pra chuva e lança-lhe aquele olhar fulminante de desafio. Você ouve um otimista ao seu lado dizendo que ela vai ficar assim a noite toda. Você não dá ouvidos porque você sabe que se não fizer aquilo, não vai poder fazer outras coisas na vida. Então, contra a fúria de Poseidon, você se lança na aventura! Mas não com a cabeça baixa, como um animal atacado. Você põe sua mochila na frente do corpo pra que nenhum doido ouse roubá-la naquele momento e corre normalmente, com a cabeça erguida, tal qual um semideus.

            Você se molha bastante e salta entre as poças assim como MarioBross salta entre seus obstáculos. Porém, como se não bastasse a água que cai de cima, as ruas estão totalmente alagadas, de tal forma que você entende porque algumas pessoas, infelizmente, são arrastadas pela força das águas durante uma chuva poderosa. Nesse momento é bom lembrar e ver que você está com seu par de tênis predileto. Aqueles velhos amigos... E inexplicavelmente, uma das solas descola-se. Seu pé molha todo. Minutos depois você é simplesmente molhado pelos carros cujos pneus cospem a água suja das ruas.

            Você continua caminhando, contrariado, mas jamais arrependido, porque por Deus! Você conhece Joseph Klimber! Assim, você desvia agilmente dos sacos de lixo que rolam pelas calçadas, arrastados pela água, já que ainda é muito cedo pro caminhão de lixo ter passado pra pegá-los. Você realmente molha os pés na água suja das calçadas e ruas e lembra que pode contrair leptospirose porque quase todo dia, ao ir cedo pra Universidade, você vê aqueles ratinhos passando desesperadamente pelas ruas e calçadas.

            Após tantos passos dados, alguns falseados, claro, você finalmente chega ao seu prédio. Mas, assim como a carona que você não pôde pegar ao tentar sair do colégio, você não pode entrar de imediato no prédio porque alguns moradores estão fazendo mudança. E nesse momento, estão simplesmente tentando entrar com uma geladeira daquELE TAMANHO!!! Você espera alguns minutos. Enquanto isso, tira seus tênis e meias. Instantes depois, você entra no elevador.

            Sua mente parece rir do seu corpo encharcado e começa a imaginar aquela janta histórica na sua limpa e seca cozinha. Ao entrar no seu recinto privado você se depara com sua mãe enxugando o chão da cozinha, que está encharcado. Aquela janela, que tanto lhe protege dos ventos frios da noite, abriu suas “portas” pra água da chuva.

            Ao fim de tudo, você vê que a única coisa que sobreviveu perfeitamente foi a sua mochila impermeável, que lhe acompanha desde 2004, quando você fazia o 8º Ano (antiga 7ª Série). É nessa hora que você larga sua roupa molhada em algum canto que você preferiria esquecer, manda mensagem pra uma amiga relatando/desabafando um pouco da sua jornada épica. Toma um banho e resolve escrever uma crônica cômica (ou não). Talvez você mesmo ria de tudo. Os outros rirão, com certeza. Foi tudo tão trágico e bobo que chega a ser cômico. E lembrando que nesse momento de reflexão, em que você senta pra escrever, você olha pela janela e percebe que a chuva passou. Algo dentro de você diz: “Ah... seu eu tivesse esperado um pouco mais...”. Dizem que isso se chama Lei de Murphy.

            Usei o pronome “você” o tempo todo, desejando observar e narrar tudo “de fora”, mas tudo aconteceu comigo, este, agora seco, banhado, limpo e cheiroso, autor e narrador. Minha intenção é divertir você, simpático leitor, já que assim, você me ajuda a AFOGAR esses pensamentos. A umidade desse prazer é nossa!

            Nunca, mas jamais, esqueça aquele simplório guarda-chuva.


quarta-feira, 11 de abril de 2012

O Mito da Rainha de Sabá: Parte 02


Obs: Na postagem anterior, a primeira parte desta pesquisa.

O MITO DA RAINHA DE SABÁ: VARIAÇÕES SOBRE UM MESMO TEMA – PARTE 2

Por Thiago Damasceno

As pesquisas da Arqueologia e da História

“Os frisos de Yeha”

        Os etíopes consideram que a rainha descrita no Kebra Negast era oriunda do reino de Aksum, reino que foi estabelecido na área que corresponde hoje à Etiópia. Acontece que o mito etíope começou a ser divulgado no milênio I a.C. e o reino de Aksum veio surgiu no século I a.C., já muito tarde para a hipotética data do contato entre o reino de Israel e o reino de Aksum, que geraria o mito. E é provável que o (provável) reinado de Salomão tenha sido no século X a.C., muito antes da estruturação do reino de Aksum. Então, onde encontrar pistas do possível reino de Sabá na Etiópia? Em Yeha.
        Yeha é uma pequena aldeia do interior etíope e segundo os habitantes locais é nessa localidade que estava o palácio da rainha de Sabá. Em Yeha encontram-se muitas ruínas, incluindo um grande templo/palácio descrito por missionários portugueses do século XVI cuja construção é datada como anterior a 600 a.C. Do interior dessa construção foram retirados frisos (faixa pintada ou esculpida na parte superior de uma parede) representando cabeças estilizadas de cabras selvagens. Esses frisos não são de origem africana, mas de origem árabe. Também foram encontradas ao lado do templo/palácio inscrições que correspondem à escrita antiga do Iêmen, país localizado no sul da Península Arábica.       
        Têm-se, portanto, a crença dos etíopes de que o reino da chamada “rainha de Sabá” era o reino de Aksum. Eles divergem quanto à capital desse reino: a atual cidade de Aksum ou a atual aldeia de Yeha. As pesquisas conduziram esses estudos à Península Arábica. A primeira imagem a seguir mostra alguns frisos de Yeha. A segunda imagem consiste no templo/palácio do local.




“O vale de Marib e o antigo reino de Sabá”

As pesquisas feitas na Arábia levaram os estudiosos do tema, como o historiador inglês Michael Wood, até o fértil vale de Marib, considerado o território do antigo reino de Sabá (atual Iêmen, no sudoeste da Península). No mapa abaixo, a localização do Iêmen (área circundada pelo círculo vermelho). A outra imagem é da localidade Marib. 




Há menções ao reino de Sabá na sura 34 do Alcorão, intitulada “Sabá”.  A fertilidade e riqueza do reino são expostas quando relata-se que ele tinha dois jardins, um à direita e outro à esquerda. O Alcorão diz também que o lugar era belo e bem abastecido por Deus. A desobediência dos habitantes de Sabá a Deus fez com que a divindade substituísse os dois jardins por jardins de frutos amargos e lançassem as águas da barragem sobre eles e, de fato, hoje existe a ruína de uma grande barragem no vale do Marib. Essa represa tem 680 metros na extremidade norte e 45 metros e meio de profundidade que retinha água para a agricultura. A riqueza desse reino também vinha do comércio de produtos aromáticos, como mirra, olíbano e principalmente, incenso, tão necessário para os rituais religiosos de diversos Estados da Antiguidade, como Egito e Israel. As rotas das caravanas árabes iam do sul para o norte da Península e outras regiões exteriores a ela passando pelo costa oeste do território peninsular. Outras ruínas que ainda encontram-se no vale do Marib são o templo do deus-lua Almaqah ,senhor das cabras selvagens, talvez as mesmas representações de cabras encontradas nos frisos de Yeha. Os muros existentes contêm também o mesmo tipo de inscrições encontradas nas ruínas de Yeha.

        Por volta de 700 a.C., com uma confiante estrutura política e comercial, o reino de Sabá começou suas relações com os reinos do Oriente Próximo, enviando embaixadores e produtos de suas fronteiras e especiarias em geral. Segundo o arqueólogo israelita Israel Finkesltein, o mito da rainha de Sabá é um retrato do comércio árabe, uma representação de “mundos” que se encontraram por meio do comércio, seja o encontro com o reino de Israel ou com os reinos africanos, pois já se considera que os reinos antigos do chifre da África (Hoje, Etiópia e Eritréia) e do sul da Península Arábica tinham importantes relações:

“ao sul, dos dois lados do mar Vermelho, havia duas outras sociedades com tradições de poder e cultura organizados, mantidos pela agricultura e o comércio entre o oceano Índico e o Mediterrâneo. Uma delas era a Etiópia, um reino antigo que tinha o cristianismo em sua forma copta como religião oficial. A outra era o Iêmen, no sudoeste da Arábia, uma terra de férteis vales montanheses e ponto de trânsito do comércio de longa distância. A certa altura, seus pequenos estados locais haviam sido incorporados num reino maior, que enfraquecera quando o comércio declinara no início da era cristã, mas revivera depois. O Iêmen tinha sua própria língua, diferente do árabe falado em outras partes da Arábia, e sua própria religião: uma multiplicidade de deuses, servidos por sacerdotes em templos que eram locais de peregrinação, oferendas votivas e prece privada (mas não comunal), além de ser também centros de grande riqueza. Nos séculos seguintes, influências cristãs e judaicas vieram da Síria, pelas rotas comerciais, ou do outro lado do mar, da Etiópia. (HOURANI, 2005: 25, 26)

        As versões do mito e a s duas atribuições de localização do reino de Sabá, sugerem que os reinos antigos do chifre africano (incluindo Aksum, vale lembrar) e do sul da Península Arábica foram governados pela mesma dinastia por um determinado período, levando duas sociedades e a produzirem vertentes do mesmo mito. Segundo Lambert: “sabe-se que, nos primeiros séculos da Era Cristã, os iemenitas do extremo sul da Península Arábica, tecnicamente avançados e altamente sofisticados, estabeleceram-se no que é hoje a Etiópia setentrional (LAMBERT, 2001: 125).

Conclusões

        O reino de Sabá estava no que hoje é o Iêmen, no sul da Península Arábia. E as interpretações de suas fontes apontam para um rico comércio realizado com o Oriente Próximo e o chifre da África, levando à circulação de crenças, idéias e mitos, como o mito da rainha de Sabá. A imagem que segue é de um palácio no atual Iêmen, no vale de Marib. Seria o palácio de uma poderosa rainha de outrora?




Referências

A BÍBLIA SAGRADA – Tradução de João Ferreira de Almeida. Gráfica Bandeirantes, Guarulhos, 2009.

HOURANI, Albert. Uma história dos povos árabes. Companhia das Letras, 2ª edição, São Paulo, 2005.

LAMBERT, Jean-Marie. História da África negra. Kelps, Goiânia, 2001.

O ALCORÃO - Tradução de Mansour Challita. ISBN 978-85-7799-168-6. Best bolso, Rio de Janeiro, 2010.

ROCHA, Everardo. O que é mito. Brasiliense, São Paulo, 1996.

WARNER, Marina. Da fera à loira. Companhia das Letras, São Paulo, 1994.

WOOD, Michael. Em busca de mitos e heróis. British Broadcasting (BBC). Londres, 2004. 45 minutos. 

quinta-feira, 5 de abril de 2012

Mitologia & História: O Mito da Rainha de Sabá - Parte 01

Este trabalho é fruto de uma das minhas pesquisas sobre mitologia durante meu curso de graduação em História pela Universidade Estadual de Goiás (UEG). Apresentei-o no IV EREH (Encontro Regional dos Estudantes de História – Regional, Centro-oeste e Triângulo Mineiro), congresso realizado entre 23 e 26 de junho de 2011 no campus de Ciência Humanas, Econômicas e Sociais da UEG em  Anápolis-GO.  Ao publicá-lo neste blog, cujo conteúdo não é especificadamente acadêmico, alterei um pouco a linguagem e a estrutura do texto. Também o divido em duas partes. A primeira fala sobre três versões do mito e a segunda falará sobre o reino de Sabá histórico. Boa leitura!

Thiago Damasceno

O MITO DA RAINHA DE SABÁ: VARIAÇÕES SOBRE UM MESMO TEMA – PARTE 1

Introdução

        As definições de mito são várias. Abrangem desde concepções da História, da Sociologia e da Antropologia às concepções da Psicologia. Para Durkheim, são instruções alegóricas destinadas a adaptar o indivíduo ao seu grupo. Para Joseph Campbell, são histórias da busca do significado e do sentido da vida feita através do tempo, com metáforas referentes à coisas absolutamente transcendentais. Segundo Everardo Rocha, “O mito é uma narrativa. É um discurso, uma fala”. Pode ser visto como uma possibilidade de se refletir sobre a existência, o cosmos, as situações de “estar no mundo” ou as relações sociais”. Segundo essas definições, pode-se ver o mito como uma história interpretativa do mundo e dos episódios de um povo, carregado de um caráter religioso. Os mitos de um povo, principalmente nos períodos que denominamos Antiguidade e Idade Média mostram como as sociedades viam sua existência, além de ser também uma representação dos seus episódios históricos, pois o mito não é uma estória que porta apenas um senso ético-religioso, ele tem seu fundo histórico.
        Nosso objetivo é buscar esse contexto histórico na análise das três versões do mito da rainha de Sabá, a versão do Velho Testamento, do Alcorão e da tradição etíope, focando as análises nas relações entre os reinos que são mencionados nas versões do mito.


Resultados e Discussões

O mito e suas versões

        Por ser uma narrativa contada há séculos em lugares diferentes, por povos de culturas diferentes em contextos e épocas distintas, o mito da rainha de Sabá adquiriu três versões ou formas, como muitos outros mitos (o mito do Dilúvio, por exemplo, encontrado nas tradições grega, hebraica, mesopotâmica e chinesa). Contudo, conservou-se a base do mito, que é a relação entre a rainha de Sabá e Salomão, o rei israelita. O centro das narrativas é o encontro entre esses dois monarcas.

A versão judaica
         
        Essa versão encontra-se no Velho Testamento, nos livros de I Reis 10:1-13 e II Crônicas 9:1-12. Segundos esses livros, ouvindo falar da riqueza e sabedoria de Salomão, a rainha de Sabá resolveu testá-lo com perguntas. Ela foi à Jerusalém, capital do reino de Israel, com uma grande comitiva e levou muitas especiarias, ouro e pedras preciosas para presenteá-lo. Apesar de sua grande riqueza, defendida pelos livros, “E deu ao rei cento e vinte talentos de ouro, e muitíssimas especiarias, e pedras preciosas; nunca veio especiaria em tanta abundância, como a que a rainha de Sabá deu ao rei Salomão” (I Reis 10: 10), a rainha de Sabá impressionou-se com a riqueza de Salomão, tanto do seu palácio, quanto a condição de seus servos e glorificou o seu deus e abençoou seus servos e sua sabedoria. O rei Salomão respondeu a todas as suas perguntas e “deu à rainha de Sabá tudo o que ela desejou, tudo quanto pediu, além do que dera por sua generosidade” (I Reis 10: 13), o que sugere uma relação além do campo político. Porém, o objetivo desse encontro é a curiosidade. A sábia e poderosa rainha de Sabá veio de seu distante reino para conhecer o sábio, poderoso e prodigioso rei Salomão, de Israel. Não são mencionadas relações comerciais ou alianças políticas.

A versão islâmica

        Presente no capitulo (ou sura) 27 do Alcorão, intitulada “As Formigas”, onde é relatado que Deus concedeu a sabedoria aos reis David e Salomão, assim como a linguagem dos pássaros. Salomão reuniu seu exército, djins (espíritos), homens e pássaros e foi ao vale das formigas, quando percebeu a ausência da poupa, um pássaro específico. Momentos depois a poupa retornou e disse que vinha de Sabá, onde ela viu um trono glorioso e governado por uma mulher, mas o Diabo havia desviado ela e seu povo do caminho certo, pois eles adoravam o Sol. Para certificar-se se o que a poupa dizia era verdade ou mentira, Salomão ordenou que ela levasse uma carta sua ao reino de Sabá. Nessa carta Salomão mandava que os membros desse reino viessem submissos a ele. A rainha de Sabá decidiu enviar ouro a Salomão em resposta à carta. Recebendo o presente, Salomão mencionou que o que Deus lhe proporcionou era melhor que o ouro e decide atacar Sabá com seu exército. Porém, Salomão perguntou aos membros de sua corte qual deles lhe traria o trono de Sabá antes que este viesse-lhe submisso. Um dos ministros, que tinha o “conhecimento do Livro”, disse que traria o trono de Sabá num abrir e fechar de olhos, e Salomão mandou desfigurar o trono para saber se a rainha o reconheceria. Quando a rainha chegou, numa espécie de mágica, foi até o palácio de Salomão, e como o piso era de cristal polido, ela confundiu-o com água e levantou seu vestido acima dos joelhos. Com isso, ela reconheceu seu pecado e submeteu-se a Salomão e ao seu deus, o “Senhor dos mundos”, segundo ainda o Alcorão.
        Carregada de sentido poético, o texto islâmico recebeu muitas interpretações. O “trono” que foi trazido perante Salomão num piscar de olhos pode ser interpretado como uma espécie de visão do reino de Sabá, onde Salomão queria mostrar a rainha, na sua forma física, que ela estava errada em adorar o Sol e assim, conseguir sua conversão e submissão. Vê-se aí a relação conjunta entre religião e política, comum na Arábia desde o advento do Islã. O Alcorão não mencionou a rainha por seu nome, mas a tradição árabe-islâmica chama-a de Balquis ou Bilquis. Segundo essa mesma tradição, a rainha de Sabá era metade mulher e metade demônio e no momento em que ela levantou seu vestido pensando que o chão do palácio de Salomão era feito de água, ela exibiu à corte israelita suas “pernas de bode”. Logo depois, ela admitiu seu pecado e aceitou o deus de Salomão. Religiosamente, para o Islã, ela foi curada de sua deformidade pela fé e passou a adorar o verdadeiro deus. A tradição islâmica interpreta esse relato de forma literal, e não simbólica.

A versão etíope

        Tal versão é relatada no Kebra Negast (Glória dos Reis), livro sagrado da Etiópia. O centro desse livro é a história da relação amorosa entre o rei Salomão e a rainha de Sabá, cujo fruto foi Menelik, considerado o ancestral das dinastias etíopes. O Kebra Negast confirmava o poder dos reis. Antes de descrever o relato desse livro, é preciso levar em conta que os etíopes consideravam e consideram a antiga Etiópia ou reino de Aksum, como reino originário da rainha de Sabá, mas as pesquisas apontam que esse reino estava na Península Arábica. A Etiópia está na região denominada “chifre da África” e apenas o Mar Vermelho separa essa região da zona sul da Península Arábica (ver no mapa, a região destacada por um círculo vermelho). A localização do reino de Sabá ainda será dissertada neste trabalho. 


De acordo com o Kebra Negast, a rainha de Sabá foi para Jerusalém partindo de um porto que corresponde hoje ao porto de Adoulis, na Eritréia, também um território do antigo reino de Aksum.  A rainha de Sabá foi convidada para ficar no palácio de Salomão, mas como ele era famoso como amante de mulheres, ela decidiu ficar apenas se ele não a tocasse. Salomão concordou e também pediu que ela não tocasse em seus objetos pessoais. Usando sua astúcia, Salomão ordenou que o jantar fosse bastante temperado para causar sede. Após o término do jantar, a rainha de Sabá procurou por água e só encontrou no quarto de Salomão. Pensando que ele dormia, ela tomou sua água, mas ela a agarrou, dizendo que ela havia quebrado sua promessa. Assim, os dois monarcas fizeram amor. Nessa noite a rainha sonhou que uma luz cruzou o céu indo de Jerusalém à Etiópia. Tempos depois a rainha voltou para seu reino. Porém, ela levou consigo dois presentes: um anel de ouro dado por Salomão e uma criança em seu ventre, que foi nomeado Menelik, que quer dizer “o filho do sábio”. Quando era jovem, Menelik foi à Jerusalém para conhecer seu pai. Salomão só acreditou que Menelik era seu filho quando viu o anel de ouro carregado por ele, o anel que o rei israelita dera à rainha de Sabá. Salomão pediu que ele permanecesse em Jerusalém, mas Menelik preferiu voltar para seu reino. Ele retornou e levou consigo a Arca da Aliança.
        Parte da atual Etiópia, como mencionado anteriormente, pertencia ao antigo reino de Aksum, cuja capital também tinha o mesmo nome: Aksum. A cidade de Aksum ainda existe e é considerada a cidade mais sagrada da Etiópia e o principal centro de peregrinações. Os cristãos ortodoxos etíopes crêem que a Arca da Aliança está na catedral de Nossa Senhora Maria de Zion em Aksum e que ela protege o país. Essa crença produz rituais, como a vigília noturna na noite de Nossa Senhora, onde padres, por meio de hinos, rezas e leituras bíblicas protegem a Arca. A Arca, segundo a crença etíope, não pode ser vista e seu guardião é vitalício.

Semana que vem postarei a segunda parte do trabalho. Até mais!


Referências

A BÍBLIA SAGRADA – Tradução de João Ferreira de Almeida. Gráfica Bandeirantes, Guarulhos, 2009.

HOURANI, Albert. Uma história dos povos árabes. Companhia das Letras, 2ª edição, São Paulo, 2005.

LAMBERT, Jean-Marie. História da África negra. Kelps, Goiânia, 2001.

O ALCORÃO - Tradução de Mansour Challita. ISBN 978-85-7799-168-6. Best bolso, Rio de Janeiro, 2010.

ROCHA, Everardo. O que é mito. Brasiliense, São Paulo, 1996.

WARNER, Marina. Da fera à loira. Companhia das Letras, São Paulo, 1994.

WOOD, Michael. Em busca de mitos e heróis. British Broadcasting (BBC). Londres, 2004. 45 minutos.